Jardim dos Mestres

Todos Nós

Agradecimentos

Meu agradecimento vai para todas as monjas, anagarikas e pessoas leigas que ouviram tantas vezes as minhas exposições dos ensinamentos do Buda.Sem eles, estas palestras não teriam ocorrido e este livro não existiria.

Um “muito obrigado” especial para os meus amigos, que sempre encorajaram e apoiaram o meu trabalho e a publicação deste livro, através da sua sempre presente compreensão e generosidade.

Àqueles que datilografaram o manuscrito a partir das fitas gravadas dos discursos, que ofereceram livremente o seu tempo, energia e amor para a propagação do Dhamma.
Que todos aqueles conectados com este esforço conjunto possam colher os frutos do excelente kamma resultante da sua generosidade.

Ayya Khema

Ilha das Monjas Parappuduwa
Dodanduwa, Sri Lanka
1 Janeiro 1987

Prefácio

Este pequeno livro é oferecido a todas as pessoas em todos os lugares, que compreendem que dukkha não é somente sofrimento, dor e angústia, mas tudo aquilo de insatisfatório que todos nós experimentamos durante as nossas vidas.

É aquela ânsia insatisfeita no coração e na mente que nos empurra em tantas direções para encontrar a felicidade última.Quando nos dermos conta de que todos os caminhos que tentamos nos levaram a um beco sem saída, terá chegado o momento correto de voltarmo-nos para os ensinamentos do Buda e ver por nós mesmos se a promessa dele:

“Apenas uma coisa eu ensino,
e isso é o sofrimento
e como dar um fim nisso
pode ser vivenciada, e se a felicidade é possível”.

À medida que a prática avança, descobriremos que ao abandonarmos as nossas idéias preconcebidas sobre como e onde dukkha pode ser evitado, penetraremos um território desconhecido dentro de nós mesmos, o que nos proporcionará um conceito, propósito, valor e realidade última da vida, totalmente novos.

Que possam existir muitos com “pouco pó sobre os olhos”, que reverterão o fluxo de dukkha e alcançarão a libertação.

Ayya Khema

I. O Dhamma do Abençoado é Exposto com Perfeição

“ O Dhamma do Abençoado
é exposto com perfeição,
visível no aqui e agora,
com efeito imediato.”

A primeira linha deste enunciado proclama a fé verdadeira no Dhamma. E isso não significa a crença em tudo sem uma investigação, mas um relacionamento íntimo de confiança. Quando uma pessoa tem fé em alguém, ela também confia nessa pessoa, ela se coloca nas mãos dela ou dele, com uma profunda conexão e abertura interior. Isso é ainda mais verdadeiro em relação à fé no ensinamento do Buda. Aqueles aspectos do Dhamma que você ainda não compreende podem ser deixados em suspenso. No entanto, isso não abala a sua fé e confiança.

Se sentirmos que ele “é exposto com perfeição,” então somos muito afortunados, pois conhecemos uma coisa neste universo que é perfeita. Não existe nada mais que possa ser encontrado sem máculas, nem existe algo que esteja no processo de tornar-se perfeito. Se tivermos essa confiança, fé e amor em relação ao Dhamma e acreditarmos que ele é exposto com perfeição, então teremos encontrado algo que supera qualquer comparação. Seremos abençoados com uma riqueza interior.

“Visível no aqui e agora,” cabe a cada um de nós. O Dhamma foi esclarecido pelo Abençoado que o ensinou por compaixão, mas nós temos que vê-lo por nós mesmos com a nossa visão interior.

“Aqui e agora,” precisa ser enfatizado, porque isso significa o não esquecimento, mas estar atento ao Dhamma a cada momento. Essa atenção nos ajuda a vigiar as nossas reações antes que elas resultem em palavras ou ações inábeis. Vendo o que há de positivo em nós e cultivando-o, vendo o negativo e substituindo-o. Quando acreditamos em todos os nossos pensamentos e os justificamos, não estamos vendo o Dhamma. Não existem justificativas, existem apenas fenômenos que surgem e que cessam.

“Com efeito imediato,” significa que não dependemos de que um Buda esteja vivo para praticar o Dhamma; embora essa seja uma crença amplamente difundida, é bem possível praticar agora. Algumas pessoas pensam ser necessário ter uma situação perfeita ou um mestre perfeito ou uma meditação perfeita. Nada disso é verdadeiro. Os fenômenos mentais e corporais, (dhammas), estão constantemente surgindo e desaparecendo, mudando sem cessar. Quando nos agarramos aos fenômenos e os consideramos como nossos, então iremos acreditar em todas as histórias que as nossas mentes nos contarem, sem discriminação. Consistimos de um corpo, sensações, percepções, formações mentais e consciência, aos quais nos agarramos com firmeza e acreditamos serem “eu” e “meu.” Precisamos dar um passo atrás, ser um observador neutro de todo o processo.

“Que convida ao exame,
que conduz para adiante.”

O entendimento do Dhamma nos conduz ao nosso íntimo mais profundo. Não somos convidados a examinar uma sala de meditação ou uma estátua do Buda, um pagode ou um santuário. Somos convidados a examinar os fenômenos, (dhammas), que estão surgindo dentro de nós. As contaminações bem como as purificações são encontradas dentro do próprio coração e mente.

As nossas mentes estão sempre muito ocupadas, sempre com recordações, planejamentos, esperanças ou julgamentos. Este corpo também poderia estar muito ocupado pegando pequenas pedras e arremessando-as n’água durante todo o dia. Mas consideramos isso um desperdício tolo de energia e por isso dirigimos o corpo para algo mais útil. Precisamos fazer o mesmo com a mente. Ao invés de ficar pensando nisto e naquilo, permitindo que as contaminações surjam, poderíamos também dirigir nossas mentes para algo mais benéfico tal como a investigação dos nossos gostos e desgostos, nossos desejos e rejeições, nossas idéias e opiniões.

Quando a mente investiga, ela não se envolve com as suas próprias criações. Ela não é capaz de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. À medida que ela se tornar cada vez mais observadora, ela permanecerá com objetividade por períodos de tempo mais longos. É por isso que o Buda ensinou que a atenção plena é o único caminho para a purificação dos seres. A observação clara e lúcida de todos os fenômenos que surgem mostra que estes são apenas fenômenos manifestando-se como mente e corpo, que estão em constante expansão e contração da mesma forma que o universo. A menos que nos tornemos observadores muito diligentes, não veremos esse aspecto da mente e corpo e não compreenderemos o Dhamma “aqui e agora,” muito embora tenhamos sido convidados “para o exame.”

“Para ser experimentado pelos sábios,
por eles mesmos.”

Ninguém é capaz de compreender o Dhamma por outrem. Podemos salmodiar, ler, discutir e ouvir, mas a menos que observemos tudo aquilo que surge, não compreenderemos o Dhamma por nós mesmos. Existe apenas um lugar no qual o Dhamma pode ser compreendido, no próprio coração e mente. Tem que ser uma experiência pessoal que sucede através da observação constante de si mesmo. A meditação ajuda. A não ser que a pessoa investigue as suas próprias reações e saiba porque deseja uma coisa e rejeita outra, ela não terá visto o Dhamma. E assim a mente também obterá uma clara percepção da impermanência, (anicca), porque os nossos desejos e aversões estão mudando constantemente. Veremos que a mente que está pensando e o corpo que está respirando são ambos dolorosos, (dukkha).

Quando a mente não opera com uma consciência elevada, transcendente, ela cria sofrimento, (dukkha). Somente uma mente ilimitada, iluminada, está livre disso. O corpo com certeza produz dukkha de muitas formas devido à sua inabilidade de permanecer estável. E a visão clara desse fato nos proporciona uma forte determinação de compreender o Dhamma por nós mesmos.

A sabedoria surge do íntimo e provém da compreensão daquilo que é experimentado. Nem o conhecimento, nem o ouvir podem produzi-la. A sabedoria também significa maturidade, que não tem nada a ver com a idade. Algumas vezes o envelhecimento pode ajudar, mas nem sempre esse é o caso. A sabedoria é um conhecimento interior que cria a autoconfiança. Não precisamos buscar a confirmação e a boa vontade de outrem, nós sabemos com certeza.

Quando salmodiamos algo, é essencial que saibamos o significado das palavras e investiguemos se elas possuem alguma conexão conosco.

pamadamulako lobho, lobho vivadamulako,
dasabyakarako lobho, lobho paramhi petiko,
tam lobham parijanantam vande’ham vitalobhakam

A cobiça é a raiz da negligência, a cobiça é a raiz das disputas,
A cobiça produz a escravidão e um futuro nascimento como fantasma;
Aquele que conheceu o fim da cobiça, eu honro Aquele que está liberto da cobiça

vihaññamulako doso, doso virupakarako,
vinasakarako doso, doso paramhi nerayo,
tam dosam parijanantam vande’ham vitadosakam

A raiva é a raiz da turbulência, a causa da feiúra,
A raiva causa muita destruição e um futuro nascimento no inferno;
aquele que conheceu o fim da raiva, eu honro Aquele que está liberto da raiva.

sabbaghamulako moho, moho sabbitikarako,
sabbandhakarako moho, moho paramhi
svadiko tam moham parijanantam vande’ham vitamohakam

A delusão é a raiz de todos os males, a delusão só cria problemas,
Toda cegueira vem da delusão, bem como um futuro nascimento como animal;
Aquele que conheceu o fim da delusão, eu honro Aquele que está liberto da delusão.

O Buda disse:

“Melhor do que mil palavras insignificantes,
é uma palavra com significado,
ao ouví-la se obtém a paz.”
Dhp. 100

Se pudermos praticar um verso do Dhamma, isso terá mais valor do que saber de cor todo o livro de cânticos.

A origem e a cessação dos fenômenos, que são os nossos mestres, nunca descansam. O Dhamma nos está sendo ensinado constantemente. Enquanto estamos acordados, todos os nossos momentos são professores do Dhamma, se assim nós os fizermos. O Dhamma é a verdade exposta pelo Iluminado, que é a lei da natureza que nos cerca e que está arraigada dentro de nós.

Certa vez o Buda disse: “Ananda, é contando comigo como um bom amigo que os seres sujeitos ao nascimento se libertam do nascimento.” (SN XLV.2).

Todos nós precisamos de um bom amigo, que tenha abnegação suficiente, não somente provendo auxílio, mas também chamando a atenção quando estivermos decaindo.Trilhar o caminho do Dhamma é como caminhar na corda bamba. Ele segue numa linha reta e cada vez que alguém escorrega, se machuca. Se sentirmos no íntimo uma sensação dolorosa, não estaremos mais sobre a corda bamba do Dhamma. Nosso bom amigo, (kalyanamitta), poderá então nos dizer: “Você se desviou em demasia para a direita ou para a esquerda, (seja qual for o caso). Você não foi cuidadoso e por isso caiu em depressão e no sofrimento. Eu chamarei sua atenção da próxima vez que você estiver se desviando.” Só poderemos aceitar isso de alguém em quem tenhamos confiança e segurança.

Uma pessoa pode ser enganada pelas belas palavras ou aparência esplêndida de alguém. O caráter de uma pessoa se revela não somente através de palavras, mas nas pequenas atividades do dia a dia. Um dos importantes indicadores do caráter de uma pessoa é como ela reage quando as coisas vão mal. É fácil ser amoroso, auxiliador e amigo quando tudo está indo bem, mas quando surgem as dificuldades a nossa tolerância e paciência são postas à prova, bem como a nossa equanimidade e determinação. Quanto menos autocentrada for a pessoa, mais fácil será para ela lidar com todas as situações.

No início, caminhar sobre a corda bamba do Dhamma poderá ser desconfortável. A pessoa não está habituada a manter o próprio equilíbrio, e ao invés disso ela se deixa influenciar por tudo, indo em todas as direções, onde quer que seja mais confortável. A pessoa poderá se sentir limitada e coagida, sem permissão para viver de acordo com os seus instintos naturais. E além disso, para caminhar sobre a corda bamba a pessoa tem que se controlar de várias formas por meio da atenção plena. Essas restrições podem no início ser irritantes, como grilhões ou amarras, mas mais tarde elas se tornarão os fatores libertadores.

Para possuir essa jóia perfeita do Dhamma nos nossos corações, precisamos estar despertos e conscientes. Então poderemos provar por nós mesmos que “o Dhamma do Abençoado é exposto com perfeição.” Não existe nenhuma outra jóia no mundo que se iguale ao valor do Dhamma. Cada um de nós pode se tornar o dono dessa jóia preciosa. Podemos nos considerar como os mais afortunados por ter essa oportunidade. Quando despertarmos pela manhã, que este seja o nosso primeiro pensamento: “Que boa fortuna tenho em poder praticar o Dhamma.”

II. Aceitando a Si Mesmo

É um fenômeno estranho a dificuldade que as pessoas têm de amar a si mesmas. Alguém pensaria que é a coisa mais fácil do mundo porque estamos constantemente preocupados conosco. Estamos sempre interessados em quanto podemos ganhar, quão bem poderemos desempenhar algo, quão confortável algo pode ser. O Buda mencionou num discurso que “Ele não encontra em nenhum lugar alguém mais querido do que ele mesmo.” Então, com base nisso, porque na verdade é tão difícil amar a si mesmo?

Amar a si mesmo com certeza não significa se entregar ao desejo. Amar de verdade é uma atitude em relação a si próprio, que a maioria das pessoas não possui, porque elas conhecem uma quantidade razoável de coisas sobre si mesmas que não são atraentes. Todas as pessoas têm inúmeras atitudes, reações, gostos e desgostos sem os quais elas estariam em melhor situação. Uma opinião é formada a respeito das atitudes de alguém e enquanto as positivas são apreciadas, as outras causam antipatia. Com base nisso, surge a supressão daqueles aspectos de si mesmo com os quais não existe satisfação. A pessoa não quer saber deles e também não os reconhece. Essa é uma das formas de lidar consigo mesmo, que é prejudicial ao crescimento.

Um outro jeito inábil é desgostar daquela parte de si mesmo que se mostra negativa e cada vez que ela surge a pessoa critica a si mesma, o que faz com que a situação fique ainda pior do que antes. Com isso, surge o medo e com freqüência a agressão. Se alguém quiser lidar consigo mesmo de uma forma equilibrada, não traz nenhum benefício fazer de conta que a parte desagradável não existe, aquelas tendências agressivas, irritantes, sensuais e presunçosas, fazendo de conta que está distante da realidade, colocando uma fenda dentro de si. Muito embora uma pessoa assim possa estar mentalmente sã, a impressão que ela transmite é de não ser totalmente verdadeira. Todos nós já topamos com pessoas assim, que são demasiado doces para serem verdadeiras, como resultado da fantasia e da supressão.

Criticar a si mesmo também não funciona. Em ambos os exemplos a pessoa transfere as suas próprias reações para outras pessoas. A pessoa critica os outros por suas deficiências, reais ou imaginárias, ou a pessoa não os vê como seres humanos comuns. Todos vivemos num mundo irreal, devido à delusão do ego, mas neste caso é particularmente irreal, porque tudo é considerado ou como perfeitamente maravilhoso, ou como absolutamente terrível.

A única coisa real é que temos dentro de nós seis raízes. Três raízes benéficas, (hábeis), e três raízes prejudiciais, (inábeis). As últimas três são a cobiça, a raiva e a delusão, mas nós também possuímos os seus opostos: generosidade, amor bondade e sabedoria. Desenvolva o interesse por este assunto. Se você fizer uma investigação a respeito disto e não ficar ansioso, então poderá com facilidade aceitar as seis raízes em todas as pessoas, sem nenhuma dificuldade, desde que você tenha visto essas raízes em si mesmo. São raízes subjacentes ao comportamento de todos. Só então poderemos olhar para nós mesmos de uma forma um pouco mais realista, isto é, sem nos criticarmos devido às raízes inábeis, nem nos elogiarmos devido às raízes hábeis, ao invés disso, aceitar a existência delas dentro de nós. Poderemos também aceitar os outros com uma visão mais clara e ter uma maior facilidade nos nossos relacionamentos.

Não sofreremos devido aos desapontamentos e não faremos críticas, porque não viveremos num mundo onde só exista o branco ou o negro, ou as três raízes daquilo que é inábil, ou os seus opostos. Tal mundo não existe em lugar nenhum e a única pessoa que é assim é um Arahant. Para as demais pessoas é em grande parte uma questão de grau. Os graus de benéfico e prejudicial são ajustados com tamanha precisão, existindo muito pouca diferença de graduação em cada um de nós, de forma que isso acaba por não ter importância. Todos possuem a mesma tarefa, cultivar as tendências hábeis e extirpar as tendências inábeis.

Aparentemente somos todos muito distintos. Isso também é uma ilusão. Todos enfrentamos os mesmos problemas e também possuímos as mesmas faculdades para lidar com eles. A única diferença é o tempo de treinamento que tenhamos tido. Um treinamento que tenha ocorrido ao longo de muitas vidas terá resultado em um pouco mais de lucidez, isso é tudo.

A lucidez do pensamento provém da purificação das próprias emoções, que é uma tarefa difícil que precisa ser feita. Mas ela só será realizada com êxito quando não for uma comoção emocional, mas um trabalho claro e honesto que a pessoa realiza consigo mesmo. Quando for considerado como nada mais do que isso, o tormento será eliminado. A imputação “Eu sou tão maravilhoso” ou “Eu sou terrível” será neutralizada. Nós não somos nem maravilhosos, nem terríveis. Todos somos seres humanos com todo o potencial e todas as obstruções. Se alguém puder amar este ser humano, que é este “eu” com todas as suas faculdades e tendências, então poderá amar aos outros de forma realista, benéfica e auxiliadora. Mas se alguém fizer uma pausa no meio e amar aquela parte que seja agradável e tiver antipatia por aquela parte que não é muito agradável, ele nunca irá se confrontar honestamente com a realidade. Algum dia ele terá que vê-la, tal como ela é. Essa é uma “área de trabalho,” uma kammatthana. É um assunto simples e interessante que diz respeito ao coração de cada um.

Se olharmos para nós mesmos dessa maneira, aprenderemos a nos amar de uma forma benéfica. “Tal qual uma mãe, colocando em risco a própria vida, ama e protege o seu filho, o seu único filho…” Torne-se a sua própria mãe! Se quisermos ter um relacionamento conosco que seja realista e que conduza ao crescimento, então precisamos nos tornar nossa própria mãe. Uma mãe sensata sabe distinguir entre aquilo que é benéfico para o seu filho e aquilo que é prejudicial. Mas ela não deixa de amar o seu filho quando ele se comporta de modo prejudicial. Esse pode ser o aspecto mais importante a ser observado em nós mesmos. Todos nós, em uma ocasião ou outra, nos comportamos de modo prejudicial com o pensamento ou com a linguagem, ou com a ação. Mais freqüentemente com o pensamento, com freqüência razoável com a linguagem e não tão freqüentemente com a ação. Então o que fazer com relação a isso? O que uma mãe faria? Ela diria ao seu filho para não fazer mais aquilo, continuaria amando a criança tanto quanto sempre amou e daria seguimento à tarefa de criar o seu filho. Talvez possamos começar a criar a nós mesmos.

A totalidade deste treinamento é uma questão de amadurecimento. Amadurecer é sabedoria, que infelizmente não está ligada à idade. Se estivesse, seria muito fácil. A pessoa teria uma certeza. Como não existe isso, a tarefa é árdua, um trabalho a ser feito. Primeiro vem o reconhecimento, depois aprender a não condenar, mas compreender: “Assim é como são as coisas.” O terceiro passo é a mudança. O reconhecimento pode ser a parte mais difícil para a maioria das pessoas, não é fácil ver aquilo que ocorre no nosso interior. Essa é a parte mais importante e o aspecto mais interessante da contemplação.

Levamos uma vida contemplativa, mas isso não significa sentarmos em meditação durante o dia todo. Uma vida contemplativa significa que a pessoa considera cada aspecto daquilo que ocorre como parte do aprendizado. A pessoa permanece introspectiva em todas as circunstâncias. Quando a pessoa se torna extrovertida, com aquilo que o Buda chamava de “exuberância da juventude,” a pessoa se dirige ao mundo com os próprios pensamentos, linguagem e ação. A pessoa precisa controlar-se e regressar para o seu íntimo. Uma vida contemplativa em algumas ordens religiosas é uma vida de orações. No nosso caminho é uma combinação de meditação e estilo de vida. A vida contemplativa prossegue no nosso íntimo. A pessoa pode realizar a mesma tarefa com ou sem a recordação disso. A contemplação é o aspecto mais importante da introspecção. Não é necessário ficar sentado durante o dia todo observando a própria respiração. Cada movimento, cada pensamento, cada palavra pode fazer surgir a compreensão de si mesmo.

Este tipo de trabalho consigo mesmo irá resultar numa profunda segurança interna, que estará enraizada na realidade. A maioria das pessoas deseja e anseia por esse tipo de segurança, mas não é nem mesmo capaz de expressar o seu desejo. Vivendo num mito, desejando ou temendo constantemente, é o oposto de ter força interior. A sensação de segurança surge quando a pessoa vê a realidade dentro de si mesma, e por causa disso, a realidade em todos os demais, passando a aceitá-la.

Aceitemos o fato de que o Buda conhecia a verdade ao afirmar que todos possuímos sete tendências latentes ou obsessões: desejo sensual, má vontade, idéias especulativas, dúvida, presunção, desejo por ser/existir, ignorância. Encontre-as em você mesmo. Sorria para elas, não desate a chorar por causa delas. Sorria e diga: “Bem, aí estão. Vou tomar uma atitude em relação a vocês.”

A vida contemplativa é vivida com freqüência de forma opressiva. Uma certa falta de alegria pode ser compensada pela extroversão. Mas isso não funciona. A pessoa deveria cultivar um certo contentamento, mas manter-se introspectivo. Não há nada com o que se preocupar ou temer, nada que seja tão difícil. Dhamma significa a lei da natureza e essa lei está manifestada em nós todo o tempo. De que devemos escapar? Não podemos fugir da lei da natureza. Onde quer que estejamos, somos o Dhamma, somos impermanentes, (anicca), insatisfeitos, (dukkha), sem uma essência,(anatta). Não importa se estamos sentados aqui ou na lua. É sempre a mesma coisa. Então precisamos ter uma abordagem serena em relação às nossas próprias dificuldades e às dos demais, mas sem exuberância e efusão. Preferivelmente, uma constante introspecção que contenha um tanto de alegria. Isso é o mais eficaz. Se alguém tiver senso de humor em relação a si mesmo, será mais fácil amar a si mesmo de forma apropriada. Também será muito mais fácil amar a todos os demais.

Havia um programa na televisão americana chamado “As Pessoas são Engraçadas.” Nós realmente temos as mais estranhas reações que ao serem observadas e analisadas muitas vezes parecem absurdas. Nós temos desejos e anseios bem estranhos e imagens irreais de nós mesmos. É bem verdade que “as pessoas são engraçadas,” então porque não ver esse lado em nós mesmos? Isso facilita aceitar aquilo que nos parece ser tão inaceitável em nós mesmos e nos outros.

Existe um aspecto da existência humana que não podemos mudar, isto é, que continua ocorrendo a cada momento. Nós já estamos meditando aqui faz algum tempo. O mundo se preocupa com isso? Ele continua o seu caminho. O único que se importa, que fica perturbado, é o nosso próprio coração e mente. Quando há perturbação, agitação, irrealismo e absurdidade, então existe também a infelicidade. Isso é na verdade desnecessário. Tudo apenas é. Se aprendermos a abordar todas as ocorrências com mais equanimidade, com aceitação, então a tarefa de purificação será muito mais fácil. Essa é a nossa tarefa, nossa própria purificação, e só pode ser realizada por nós mesmos.

Um dos melhores aspectos com respeito a isso é que se alguém tiver atenção naquilo que estiver fazendo, se insistir nisso dia após dia sem esquecimento e continuar meditando sem esperar grandes resultados, pouco a pouco eles surgirão. Isso, também, é assim. Enquanto o empenho nessa tarefa persistir, ocorrerá um constante desgaste das impurezas e dos pensamentos irreais, pois não existe felicidade neles e poucos vão querer ficar agarrados à infelicidade. Finalmente, a pessoa esgota aquelas coisas por fazer que estão fora de si mesma. Os livros, dizem todos as mesmas coisas, as cartas, foram todas escritas, as flores, foram todas aguadas, não resta mais nada por fazer, exceto olhar para dentro de si. E com a freqüente repetição disso, uma mudança ocorre. Ela poderá ser lenta, mas já que estivemos aqui por tantas vidas, o que é um dia, um mês, um ano, dez anos? Eles estão todos transcorrendo, de qualquer maneira.

Não há mais nada por fazer e nenhum outro lugar para ir. A terra se move num círculo, a vida se move do nascimento para a morte sem que tenhamos, sequer, que nos mover. Tudo acontece sem a nossa interferência. A única coisa que precisamos fazer é estar conectados com a realidade. E quando fizermos isso, descobriremos que amar-nos e amar os outros é uma conseqüência natural; porque estamos interessados na realidade e essa é a verdadeira tarefa do coração – amar. Mas só se também tivermos visto o outro lado da moeda em nós mesmos, e se tivermos feito o trabalho de purificação. Neste caso, não será mais um esforço ou um empreendimento deliberado, mas se tornará uma função natural dos nossos sentimentos mais íntimos, dirigido para dentro, mas luminoso no exterior.

A direção para dentro é um aspecto importante da nossa vida contemplativa. Qualquer coisa que ocorra no nosso íntimo tem repercussões diretas naquilo que ocorre no exterior. A luminosidade e pureza interior não podem ser disfarçadas, nem as impurezas.

Algumas vezes pensamos que podemos representar algo que não somos. Isso não é possível. O Buda disse que apenas conhecemos uma pessoa depois de tê-la ouvido falar muitas vezes e de ter vivido com ela durante muito tempo. As pessoas em geral tentam vender uma imagem melhor do que aquilo que elas na verdade são. Assim, é claro, elas ficam desapontadas consigo mesmas ao fracassarem e igualmente desapontadas com os outros. Conhecer a si mesmo de forma realista possibilita o amor verdadeiro. Esse tipo de emoção proporciona o contentamento necessário para esta tarefa na qual estamos engajados. Ao aceitarmos a nós mesmos como na verdade somos e aos outros, nossa tarefa de purificação, de ir desgastando as impurezas, será muito mais fácil.

III. Para Controlar a própria Mente

Nosso velho amigo dukkha surge na mente como insatisfação causada por todos os tipos de estímulos. Pode ser disparado pelo desconforto corporal, mas mais freqüentemente é causado pelas próprias aberrações e convulsões da mente. A mente cria dukkha e é por isso que realmente precisamos vigiar e cuidar das nossas mentes.

A nossa própria mente pode fazer com que sejamos felizes, a nossa própria mente pode fazer com que sejamos infelizes. Não existe nenhuma pessoa ou coisa em todo o mundo que possa fazer isso por nós. Todas as ocorrências funcionam para nós como estímulos que constantemente nos pegam de surpresa. Por conseguinte, precisamos desenvolver uma atenção intensa em relação aos nossos momentos mentais.

Temos uma boa oportunidade de fazer isso na meditação. Pode haver duas orientações na meditação, tranqüilidade, (samatha), e insight, (vipassana). Se pudermos alcançar um certo nível de tranqüilidade é uma indicação de que a concentração está melhorando. Mas a não ser que essa habilidade valiosa seja empregada para o insight, será uma perda de tempo. Se a mente se tranqüiliza, freqüentemente surge a felicidade, mas precisamos observar o quão passageira e impermanente é essa felicidade, e como até mesmo o êxtase é em essência apenas uma condição que pode ser perdida com facilidade. Apenas o insight é irreversível. Quanto mais firme a tranqüilidade estiver estabelecida, melhor será a resistência às perturbações. No início, qualquer ruído, desconforto ou pensamento irá interrompê-la. Especialmente se a mente não esteve num estado de calma durante o dia.

A impermanência, (anicca), precisa ser vista com clareza em tudo aquilo que acontece, quer seja na meditação ou fora dela. O fato da constante mudança deve e precisa ser usado para a obtenção do insight da realidade. A atenção plena é o núcleo da meditação Budista e o insight é o seu objetivo. Nós despendemos nosso tempo de formas variadas e uma parte dele em meditação, mas todo o nosso tempo pode ser empregado para obter algum insight das nossas próprias mentes. É ali que todo o mundo está acontecendo para nós. Nada, exceto aquilo que estejamos pensando, existe para nós.

Quanto mais observarmos a nossa mente e virmos o que ela faz por nós e para nós, mais estaremos inclinados a cuidar bem dela e tratá-la com respeito. Um dos maiores erros que podemos cometer é não nos darmos conta da importância da mente. A mente tem a capacidade de criar para nós o bem e também o mal, e apenas quando formos capazes de permanecer felizes e equânimes não importando que condições estejam surgindo, somente então poderemos dizer que temos um pouco de controle. Até que isso ocorra, estaremos descontrolados e os nossos pensamentos é que estarão no controle.

“Qualquer dano que um inimigo faça a um inimigo,
ou aquele que odeia ao odiado,
a mente direcionada de forma inábil deveras
poderá causar a uma pessoa o maior dano.
Aquilo que nem uma mãe, tampouco um pai,
nem qualquer outro ente querido pode fazer,
a mente direcionada de forma hábil deveras
poderá causar a uma pessoa o maior benefício.”
Dhp. 42, 43

Acima, as palavras do Buda mostram com clareza que não existe nada mais valioso do que uma mente controlada e direcionada de forma hábil. A domesticação da própria mente não ocorre apenas na meditação, esse é apenas um treinamento específico. Pode ser comparado com o aprender a jogar tênis. A pessoa treina com um instrutor, repetidamente, até que tenha desenvolvido equilíbrio e aptidão e possa na prática jogar numa competição de tênis. A nossa competição para domesticar a mente ocorre na vida diária, em todas as situações com as quais nos deparemos.

O maior apoio que podemos ter é a atenção plena, que significa estar totalmente presente em cada momento. Se a mente permanecer centrada ela não poderá criar histórias acerca da injustiça do mundo ou dos amigos, ou acerca dos próprios desejos, ou das próprias lamentações. Todas essas histórias fabricadas pela mente caberiam em muitos tomos, mas quando estamos plenamente atentos essas verbalizações se acabam. “Atenção Plena” é estar totalmente absorto no momento, não deixando espaço para nada mais. Estaremos preenchidos com os acontecimentos momentâneos, quer estejamos em pé ou sentados ou deitados, confortáveis ou desconfortáveis, sentindo prazer ou desprazer. O que quer que seja, estaremos com a consciência isenta de críticas, “apenas percebendo,” sem julgamento.

A plena consciência induz o julgamento. Compreendemos o propósito do nosso pensamento, palavra ou ação, se estamos empregando meios hábeis ou não, e se na verdade alcançamos o resultado necessário. É necessário ter uma certa distância de si mesmo para poder julgar com isenção. Se estivermos totalmente envolvidos é muito difícil ter uma perspectiva objetiva. A atenção plena combinada com a plena consciência proporcionam a necessária distância, objetividade e desapego.

Qualquer dukkha que tenhamos, pequeno, médio ou grande, contínuo ou intermitente, tudo isso é criado pela própria mente. Nós somos os criadores de tudo aquilo que nos ocorre, formando nosso próprio destino, ninguém mais está envolvido. Cada um está desempenhando o seu próprio papel, é um acaso que estejamos próximos de algumas pessoas e distantes em outras ocasiões. Mas tudo aquilo que fizermos, tudo é feito pelos nossos momentos mentais.

Quanto mais observarmos os nossos pensamentos durante a meditação, mais insight poderá surgir, se houver um entendimento objetivo daquilo que estiver ocorrendo. Quando observamos os momentos mentais surgirem, permanecerem e cessarem, o distanciamento do nosso processo pensante irá ocorrer, o que resulta em desapego. Os pensamentos surgem e desaparecem a todo momento, como a respiração. Se nos agarrarmos a eles e tentarmos possuí-los, aí é quando todos os problemas têm início. Queremos possuí-los e realmente fazer algo com eles, especialmente se forem negativos, o que com certeza irá criar dukkha.

Vale a pena lembrar a fórmula do Buda para o esforço correto: “Não permitir que um pensamento prejudicial/inábil, que ainda não tenha surgido, surja. Não manter um pensamento prejudicial/inábil que já tenha surgido. Estimular um pensamento benéfico/hábil que ainda não tenha surgido. Manter um pensamento benéfico/hábil que já tenha surgido.”

Quanto mais rápido pudermos nos tornar proficientes no esforço correto, melhor. Isso faz parte do treinamento ao qual nos submetemos durante a meditação. Quando tivermos aprendido a abandonar com rapidez qualquer coisa que esteja surgindo na meditação, poderemos fazer o mesmo com os pensamentos prejudiciais na vida diária. Durante a meditação estamos vigilantes em relação aos pensamentos prejudiciais, podemos usar essa mesma habilidade para proteger as nossas mentes em todas as situações. Quanto mais aprendermos a fechar a porta da mente a tudo aquilo de negativo que perturba a nossa paz interior, mais fácil será a nossa vida. Paz mental não é indiferença. Uma mente em paz é uma mente compassiva. Reconhecer e abandonar não é supressão.

Dukkha é criado por nós mesmos e perpetuado por nós mesmos. Se formos sinceros no nosso desejo de eliminá-lo, temos de observar a mente com cuidado, para obter o insight daquilo que realmente está ocorrendo no nosso íntimo. O que nos está estimulando? Existem inúmeros estímulos, mas existem apenas duas reações. Uma é a equanimidade e a outra é o desejo.

Podemos aprender com tudo. Hoje muitos anagarikas tiveram que esperar muito tempo na fila do caixa no banco, o que foi um exercício de paciência. Se o exercício foi bem sucedido ou não, não importa tanto quanto o fato de que foi uma oportunidade para o aprendizado. Tudo aquilo que fazemos é um exercício, esse é o nosso propósito como seres humanos. É a única razão de estarmos aqui, isto é, usar o tempo neste nosso pequeno planeta para aprender e crescer. Pode ser chamado de sala de aula para a educação de adultos. Qualquer outra coisa que pensemos como sendo o propósito da vida é um entendimento incorreto.

Aqui somos apenas convidados, desempenhando um papel limitado aos convidados. Se usarmos o nosso tempo para obter o insight de nós mesmos, utilizando os nossos gostos e desgostos, nossas resistências, nossas rejeições, nossas preocupações, nossos medos, então estaremos passando por esta vida com o melhor benefício. É uma grande habilidade viver dessa forma. O Buda chamava isso de “urgência”, (samvega), a percepção de que temos de trabalhar com nós mesmos agora sem deixar isso para um futuro indeterminado, quando poderemos ter mais tempo disponível. Tudo pode ser uma oportunidade de aprendizado e agora é o momento correto.

Ao encontrarmos o nosso velho amigo dukkha, perguntaremos: “De onde você vem?” Ao obtermos uma resposta deveríamos perguntar outra vez, indo cada vez mais fundo no tema. Existe apenas uma resposta verdadeira, mas nós não a obteremos de imediato. Precisamos vasculhar várias respostas até que cheguemos ao fundo do poço, que é o “ego.” Quando tivermos chegado nele, saberemos que chegamos ao fim das perguntas e ao início do insight. Poderemos então tentar investigar como o ego produziu novamente dukkha. Como isso ocorreu, qual foi a reação? Ao vermos a causa, é possível que abandonemos aquele entendimento incorreto em particular. Tendo visto causa e efeito por nós mesmos, nunca mais esqueceremos isso. De gota em gota se enche um balde, pouco a pouco nos purificamos. Cada momento vale a pena.

Quanto mais experimentarmos cada momento como digno do nosso esforço, tempo e interesse, mais energia haverá. Não existirão momentos inúteis, cada momento será importante, se for usado com habilidade. Uma energia incrível surgirá a partir disso, porque tudo se soma numa vida que é vivida da melhor maneira possível.

IV. Seja Ninguém

Ser feliz também significa estar em paz, mas quase sempre as pessoas não querem realmente dirigir a sua atenção para isso. Existe uma conotação de “não interessante” em relação a isso, ou “nada acontecendo.” É óbvio que não haveria proliferações mentais, (papañca), ou excitação. A paz é considerada como a perfeição neste mundo, sob a perspectiva política, social e pessoal.

No entanto, é muito difícil encontrar a paz em qualquer lugar que seja. Uma das razões para isso deve ser, não só porque é difícil de ser alcançada, mas também por que muito poucas pessoas se empenham em tal realização. É como se isso fosse uma negação da vida, da supremacia de cada um. Só aqueles que se dedicam a uma prática espiritual estariam preocupados em dirigir as suas mentes para a paz.

Uma tendência natural é cultivar a própria superioridade, o que com freqüência conduz ao outro extremo, a própria inferioridade. Quando se tem em mente a própria superioridade é impossível encontrar a paz. A única coisa que pode ser encontrada é um jogo de poder, “O que quer que você faça, eu farei melhor.” Ou, em certas ocasiões, quando é evidente que esse não é o caso, então “o que quer que você faça, eu não posso fazer tão bem.” Na nossa vida, existem momentos em que temos de aceitar a verdade, quando vemos com clareza que não podemos fazer tudo tão bem quanto a pessoa que está ao lado, quer seja varrer o chão ou escrever um livro.

Esse tipo de atitude, que é bastante comum, é o oposto da paz. Uma exibição das próprias habilidades, ou ausência delas, irá produzir inquietação ao invés de paz. Existe sempre a busca, o desejo por um resultado sob a forma de reconhecimento pelas outras pessoas da nossa superioridade ou a negação desta. Quando ela é negada, surge o conflito. Ao admiti-la, é a vitória.

A vitória em relação a outras pessoas tem como causa subjacente uma batalha. Na guerra nunca há um vencedor, apenas perdedores. Não importa quem assine primeiro o armistício, ambos os lados perdem. O mesmo se aplica a este tipo de atitude. Existem apenas perdedores, muito embora um deles possa obter uma vitória momentânea, tendo sido aceito como aquele que sabe mais, ou como o mais forte ou o mais esperto. As batalhas e a paz não combinam.

Por fim nos perguntamos, alguém na verdade deseja a paz? Ninguém parece tê-la. Existe alguém realmente se esforçando para consegui-la? As pessoas conseguem na vida aquilo que buscam com forte determinação. É importante investigar no íntimo do nosso coração se a paz é realmente aquilo que queremos. A investigação do próprio coração é algo difícil de ser feito. A maioria das pessoas possui uma porta de aço grossa fechando a porta do seu coração. Elas são incapazes de entrar para descobrir o que ocorre ali dentro. Mas, tanto quanto possível, todos precisam tentar entrar e descobrir quais são as suas próprias prioridades.

Nos momentos de extrema agitação ou confusão, quando a pessoa não está obtendo a supremacia desejada, ou ela se sente realmente inferior, então tudo aquilo que ela deseja é a paz. Que tudo se aplaque outra vez, e que nem a superioridade nem a inferioridade sejam muito distinguíveis, mas então o que acontece? É realmente a paz que se quer? Ou o que se quer é ser alguém especial, alguém importante ou cativante?

Um “alguém” nunca terá paz. Existe um símile interessante sobre uma mangueira: um rei estava cavalgando pela floresta quando se deparou com uma mangueira carregada de frutos. Ele disse aos seus serviçais: “Venham ao anoitecer e colham as mangas,” porque ele queria as frutas para a ceia real. Os serviçais regressaram para a floresta e voltaram ao palácio com as mãos vazias dizendo ao rei: “Desculpe-nos senhor, todas as mangas se foram, não havia nenhuma manga na mangueira.” O rei pensou que os serviçais tinham tido preguiça de ir até a floresta e assim ele mesmo foi até lá. O que ele viu, ao invés da bela mangueira carregada de frutas, foi uma árvore patética, dilapidada, que havia sido agredida e despojada das suas frutas e folhas. Alguém, incapaz de alcançar todos os galhos, quebrou-os e levou todas as frutas. Assim que o rei caminhou um pouco mais, ele encontrou uma outra mangueira, bela no seu esplendor verdejante, mas sem nenhuma fruta. Ninguém teve interesse de se aproximar dela, já que não havia frutos, e assim ela foi deixada em paz. O rei voltou ao palácio, deu a coroa real e o cetro para os seus ministros e disse: “O reino agora é de vocês, eu irei viver numa cabana na floresta.”

Sendo ninguém e possuindo nada, não há perigo de conflitos ou ataques, então existe paz. A mangueira carregada de frutas não teve um momento de paz sequer: todos queriam os seus frutos. Se realmente desejamos a paz, temos que ser ninguém. Nem importante, nem esperto, nem belo, nem famoso, nem certo, nem no comando de nada. Precisamos ser discretos e com tão poucos atributos quanto possível. A mangueira sem frutos estava em paz em todo o seu esplendor e proporcionando sombra. Ser ninguém não significa nunca fazer mais nada. Significa apenas agir sem autopromoção e sem ambicionar resultados. A mangueira tinha sombra para dar, mas ela não exibia os seus atributos ou se preocupava se alguém queria a sua sombra ou não. Esse tipo de habilidade possibilita a paz interior. É uma habilidade rara, porque a maioria das pessoas vacila de um extremo ao outro, quer seja sem fazer nada e pensando, “vamos ver como eles se ajeitam sem mim” ou assumindo o controle e projetando as suas idéias e opiniões.

Ser “alguém” parece estar muito mais enraizado dentro de nós e ser muito mais importante do que ter paz. Então precisamos investigar com muito cuidado o que estamos buscando na verdade. O que é que queremos da vida? Se queremos ser importantes, queridos, amados, então também temos que tomar em conta os seus opostos. Cada positivo traz consigo um negativo, tal como o sol que cria as sombras. Se quisermos um, temos que aceitar o outro sem nos queixarmos disso.

Mas se realmente quisermos um coração e mente pacíficos, segurança e solidez internas, então temos que desistir de ser alguém, qualquer um que seja. O corpo e a mente não desaparecerão devido a isso, o que desaparece é a compulsão, a busca e a afirmação da importância e da supremacia desta pessoa em particular, chamada “eu.”

Cada ser humano se considera importante. Existem bilhões de pessoas neste planeta, quantas irão se enlutar por nós? Conte-os por um momento. Seis ou oito, doze ou quinze, de todos esses bilhões? Essa ponderação pode nos mostrar que temos uma idéia muito exagerada da nossa própria importância. Quanto mais considerarmos isso de forma apropriada, mais fácil será a vida.

Querer ser alguém é perigoso. É como brincar com o fogo em que se coloca as mãos a todo instante, machucando o tempo todo. Ninguém irá jogar esse jogo de acordo com as nossas próprias regras. As pessoas que realmente conseguem ser alguém, como por exemplo os chefes de estado, invariavelmente precisam estar cercadas de fortes guarda-costas porque as suas vidas estão sempre ameaçadas. Ninguém gosta de admitir que outra pessoa é mais importante. Um dos maiores obstáculos à paz de espírito é o “alguém” que nós mesmos criamos.

No mundo em que vivemos, podemos encontrar pessoas, animais, a natureza e objetos feitos pelo homem. Dentro de tudo isso, se quisermos ter controle sobre alguma coisa, a única coisa sobre a qual poderemos exercer alguma influência é o nosso próprio coração e mente. Se realmente quisermos ser alguém, poderíamos tentar ser aquela pessoa rara, aquela que tem controle sobre o seu próprio coração e mente. Ser alguém assim não somente é muito raro, mas também traz consigo os mais benéficos resultados. Esse tipo de pessoa não cai na armadilha das impurezas. Embora as impurezas não estejam ainda desenraizadas, ela não irá cometer o erro de exibi-las e envolver-se com elas.

Há uma história sobre Ajaan Chah, um famoso mestre de meditação da região do Nordeste da Tailândia. Ele foi acusado de ter muita raiva. Ao que Ajaan Chah respondia: “Isso pode ser verdade, mas eu não faço uso dela.” Uma resposta como essa provém de um profundo entendimento da própria natureza, é por isso que uma resposta dessas nos impressiona tanto. É uma pessoa rara aquela que não permite ser contaminada por um pensamento, palavra ou ação. Essa pessoa é realmente alguém, e não precisa provar isso para ninguém mais, principalmente por isso ser bem óbvio. Em todo caso, esse tipo de pessoa não tem o desejo de provar nada. Existe apenas uma aspiração permanente, que é a própria paz de espírito.

Quando temos como prioridade a paz de espírito, tudo aquilo que vier à mente e que se manifestar como linguagem ou ação será direcionado para isso. Qualquer coisa que não crie a paz de espírito será descartada, no entanto não devemos confundir isso com estar sempre certo ou ter a última palavra. Os outros não precisam estar de acordo. A paz de espírito pertence a cada um e cada um tem que encontrá-la através dos seus próprios esforços.

V. Guerra e Paz

Guerra e paz são a saga épica da humanidade. Elas representam tudo que os nossos livros de história contêm porque são aquilo que está contido nos nossos corações.

Se você alguma vez leu Dom Quixote, irá se lembrar que ele lutava contra moinhos de vento. Todos estamos fazendo exatamente o mesmo, lutando contra moinhos de vento. Dom Quixote, que foi a invenção da imaginação de um escritor, era um homem que acreditava ser um grande guerreiro. Ele pensava que cada moinho de vento que encontrava era um inimigo e começava a guerrear contra ele. É exatamente isso que fazemos no íntimo dos nossos próprios corações e é por essa razão que essa história tem um apelo imortal. É uma história sobre nós mesmos. Escritores e poetas que sobreviveram além da sua própria era, sempre relataram aos seres humanos histórias sobre eles mesmos. A maioria das pessoas não querem ouvir porque não ajuda nada quando outras pessoas nos dizem o que existe de errado conosco, e pouquíssimos se dão ao trabalho de ouvir. Cada um tem que descobrir por si mesmo e a maioria das pessoas não quer fazer isso tampouco.

O que realmente significa guerrear contra moinhos de vento? Significa lutar contra tudo que não seja importante ou real, ou seja, só inimigos e batalhas imaginárias. Temas bem insignificantes que convertemos em algo sólido e formidável nas nossas mentes. Podemos dizer: “Eu não posso tolerar isso” e assim começamos a lutar, ou “Eu não gosto dele” e uma batalha se desencadeia, ou “Eu me sinto tão infeliz” e a guerra interior irrompe com furiosidade. Nós nem sabemos direito porque estamos tão infelizes. O tempo, a comida, as pessoas, o trabalho, o lazer, o país, qualquer coisa em geral serve como razão. Porque isso acontece conosco? Por que resistimos à idéia de soltarmo-nos verdadeiramente das coisas e tornarmo-nos aquilo que realmente somos, isto é, nada. Ninguém quer ser nada.

Todos querem ser alguma coisa ou alguém, mesmo que seja apenas um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento.Ou ainda, alguém que sabe e age, e que irá se tornar alguma outra coisa, alguém que possui certos atributos, concepções, opiniões e idéias. Mesmo as idéias claramente equivocadas são agarradas com firmeza, porque elas fazem com que o “eu” tenha mais solidez. Parece negativo e depressivo ser ninguém e não ter nada. Temos que descobrir por nós mesmos que essa é a sensação mais regozijadora e libertadora que podemos ter. Mas porque tememos que moinhos de vento possam nos atacar, não nos queremos soltar das nossas idéias.

Porque não podemos ter paz no mundo? Porque ninguém quer se desarmar. Nenhum país quer assinar um acordo de desarmamento, o que todos nós lamentamos. Mas alguma vez olhamos para ver se nós mesmos na verdade nos desarmamos? Se nós mesmos não fizemos isso, porque nos surpreendermos com o fato de que ninguém mais está preparado para fazer isso também? Ninguém quer ser o primeiro a não ter armas; os outros poderão vencer. Isso realmente importa? Se não houver ninguém que possa ser conquistado? Como pode existir uma vitória sobre ninguém? Deixe que aqueles que lutam vençam todas as guerras, tudo que importa é ter paz no próprio coração. Enquanto resistirmos e rejeitarmos e continuarmos a buscar todo tipo de desculpas racionais para continuar a agir dessa forma, haverá guerras.

A guerra se manifesta no exterior através da violência, agressão e morte. Mas como ela se revela internamente? Nós temos um arsenal dentro de nós, não de armas e bombas nucleares, mas que possui o mesmo efeito. E quem se fere é sempre aquele que está atirando, isto é, nós mesmos. Algumas vezes alguma outra pessoa se posiciona dentro da linha de tiro e se ela não for cuidadosa também será ferida. Esse é um acidente deplorável. As principais explosões são as bombas que explodem no próprio coração. A área de desastre é onde elas são detonadas.

O arsenal que carregamos conosco consiste na nossa má vontade e raiva, nossos desejos e cobiças. O único critério é que não nos sentimos em paz interiormente. Não precisamos acreditar em nada, só necessitamos verificar se há paz e alegria no nosso coração. Se estiverem ausentes, a maioria das pessoas tentará encontrá-las fora de si mesmas. Assim é como todas as guerras começam. Sempre a culpa é do outro país, e se não houver ninguém em quem colocar a culpa, então a justificativa é a necessidade de mais território para expansão, maior soberania territorial. Em termos pessoais, a pessoa precisa de mais diversão, mais prazer, mais conforto, mais distrações para a mente. Se ela não puder encontrar ninguém mais para culpar pela própria falta de paz, então a pessoa crê que essa é uma necessidade não satisfeita.

Quem é essa pessoa que precisa ter mais? Uma invenção da nossa imaginação, lutando contra moinhos de vento. Esse “mais” nunca tem fim. A pessoa poderá ir de país em país, de pessoa em pessoa. Existem bilhões de pessoas neste planeta; é muito improvável que queiramos ver cada uma delas, ou mesmo a centésima parte, uma vida inteira não seria suficiente para isso. Podemos escolher vinte ou trinta pessoas e ir de uma para outra e depois regressar, mudando de uma atividade para outra, de uma idéia para outra. Estamos lutando contra o nosso próprio dukkha e não queremos aceitar que os moinhos de vento no nosso coração são gerados por nós mesmos. Acreditamos que alguém colocou-os ali contra nós, e se nos movermos iremos escapar deles.

Poucas pessoas, por fim, chegam à conclusão de que esses moinhos de vento são imaginários, que é possível removê-los não lhes concedendo força e importância. Que podemos abrir os nossos corações sem medo e de forma gentil, gradual e abandonar as nossas noções e opiniões preconcebidas, concepções e idéias, repressões e respostas condicionadas. Quando tudo isso é removido, o que resta? Um espaço amplo e aberto, que pode ser preenchido com qualquer coisa que se queira. Se a pessoa tiver bom senso, irá preenchê-lo com amor, compaixão e equanimidade. Então não haverá nada mais pelo que lutar. Só o que fica é a felicidade e a paz, que não podem ser encontradas fora de nós mesmos. É impossível tomar algo de fora e colocá-lo dentro de nós. Não dispomos de uma abertura pela qual a paz possa entrar. Temos que começar no nosso íntimo e a partir daí trabalhar para o exterior. A menos que isso se torne claro para nós, estaremos sempre buscando uma nova cruzada.

Imagine como era na época das cruzadas! Haviam os nobres cavaleiros que gastavam a sua fortuna para se equipar com as armas mais modernas e avançadas, equipando cavalos e seguidores, e então partindo para levar a religião aos infiéis. Muitos morriam ao longo do caminho devido às dificuldades e às batalhas, e aqueles que chegavam ao fim da jornada, a Terra Santa, ainda assim não obtinham nenhum resultado, apenas mais guerra. Ao analisarmos isso na atualidade, parece algo absolutamente tolo, quase chegando ao ridículo.

No entanto, fazemos o mesmo com as nossas vidas. Se, por exemplo, tivéssemos escrito no nosso diário algo que nos tivesse aborrecido há três ou quatro anos atrás e fôssemos ler aquilo agora, pareceria bem absurdo. Não seríamos capazes de lembrar por que razão aquilo poderia ter sido importante. Estamos constantemente engajados nessas tolices com coisas menores e sem importância, e gastamos a nossa energia tentando solucioná-las de forma a satisfazer o nosso ego. Não seria muito melhor esquecer essas formações mentais e dar atenção àquilo que é realmente importante? Existe apenas uma coisa que é importante para todos os seres e isso é um coração feliz e em paz. Isso não pode ser comprado e nem é dado de graça. Ninguém é capaz de dar isso para outrem e nem pode ser achado. Ramana Maharshi, um sábio do sul da Índia, disse: “A paz e a felicidade não são nosso patrimônio de nascença. Qualquer um que as tenha alcançado, assim o fez através do esforço contínuo.”

Algumas pessoas têm a idéia de que a paz e a felicidade são sinônimos de não fazer nada, não ter tarefas ou responsabilidades, ser cuidado pelos outros. Isso é na verdade resultado de preguiça. Para conquistar a paz e a felicidade é necessário esforço incansável com o próprio coração. Não é possível alcançá-las através da proliferação, tentando obter mais, só querendo menos. Mas tornando-nos cada vez mais vazios, até que reste apenas um espaço vazio, amplo, para ser preenchido pela paz e a felicidade. Enquanto os nossos corações estiverem repletos com gostos e desgostos, como poderão a paz e a felicidade encontrar algum espaço?

Uma pessoa pode encontrar paz dentro de si mesma em qualquer situação, qualquer lugar, qualquer circunstância, mas só através do esforço, não através da distração. O mundo oferece distrações e contatos sensuais que são na maioria das vezes muito tentadores. Quanto mais ação houver, mais distraída a mente ficará e menos teremos que observar o próprio dukkha. Quando há tempo e oportunidade para a introspecção, descobrimos que a realidade interior é distinta daquilo que tínhamos imaginado. Muitas pessoas desviam o olhar com rapidez, elas não estão interessadas nisso. Não é culpa de ninguém que dukkha existe. A única cura é a renúncia. Na verdade é bem simples, mas poucas pessoas crêem nisso a ponto de colocá-la em prática.

Existe um conhecido símile da armadilha para macacos. O tipo que é usado na Ásia é um funil de madeira com uma abertura estreita. Na extremidade mais ampla se encontra um doce. O macaco, atraído pelo doce, enfia a pata através da abertura estreita e agarra o doce. No momento de tirar a pata, ele não consegue fazer com que o punho com o doce atravessem a abertura estreita. Ele fica assim aprisionado e o caçador vem e o captura. O macaco não se dá conta que a única coisa que precisa fazer para se libertar é soltar o doce.

Assim é a nossa vida. Uma armadilha, porque queremos uma vida doce e agradável. Como não somos capazes de renunciar, ficamos aprisionados no ciclo contínuo de felicidade-infelicidade, sobe-desce, esperança-desespero. Ao invés de tentarmos por nós mesmos , para ver se podemos nos soltar e ser livres, resistimos e rejeitamos essa idéia. No entanto, todos estamos de acordo que aquilo que realmente importa é a paz e a felicidade, que só podem existir numa mente e coração livres.

Existe uma história encantadora de Nazrudin, um Mestre Sufi, que tinha um talento especial para contar histórias absurdas. Certo dia, diz a história, ele enviou um dos seus discípulos ao mercado e pediu que lhe comprasse uma saco de chiles. O discípulo fez como lhe havia sido pedido e trouxe o saco para Nazrudin, que começou a comer os chiles, um após o outro. Em pouco tempo a sua face ficou vermelha, o nariz começou a escorrer, os olhos começaram a lacrimejar e ele estava engasgando. O discípulo observou isso durante algum tempo cheio de temor e depois disse: “Senhor, a sua face está ficando vermelha, os seus olhos estão lacrimejando e você está engasgando. Porque você não para de comer esses chiles?” Nazrudin respondeu: “Estou esperando encontrar um que seja doce.”

A ajuda pedagógica dos chiles! Nós, também, estamos esperando por algo, algum lugar que vá criar para nós a paz e a felicidade. Nesse meio tempo, não existe nada além de dukkha, os olhos estão lacrimejando, o nariz está escorrendo, mas nós não paramos com as nossas próprias criações. Deve haver no fundo do saco uma que seja doce! Não adianta pensar, ouvir ou ler a respeito, a única forma efetiva é olhar para dentro do próprio coração e vê-lo com compreensão. Quanto mais repleto estiver o coração de desejos e cobiças, mais dura e difícil se tornará a vida.

Porque lutar contra todos esses moinhos de vento? Eles são construídos por nós mesmos, e nós mesmos podemos removê-los. É uma experiência muito recompensadora investigar o que está criando confusão no próprio coração e mente. Descobrir uma emoção após a outra, não para criar-lhes desculpas e justificativas, mas para compreender que elas constituem os campos de batalha do mundo, e começar a desmantelar as armas para que o desarmamento se torne uma realidade.

VI. Não dualidade

A verdade ocupa uma posição muito importante nos ensinamentos do Buda. As Quatro Nobres Verdades representam o cubo da roda do Dhamma. A verdade, (sacca), é uma das dez perfeições que devem ser cultivadas para a auto-purificação.

A verdade pode ter diferentes aspectos. Se quisermos dar um fim ao sofrimento, temos que buscar a verdade no seu nível mais profundo. Os preceitos de virtude que incluem o “não mentir” representam o treinamento básico sem o qual não se pode conduzir uma vida espiritual.

Para chegar à verdade, é necessário ir ao fundo de si mesmo e isso não é algo fácil de ser feito, agravado pelo problema da falta de amor a si próprio. Em geral o que ocorre é que se queremos aprender a amar a nós mesmos é porque a raiva deve estar presente e estamos aprisionados no mundo da dualidade.

Enquanto estivermos flutuando no mundo da dualidade, não seremos capazes de chegar ao fundo da verdade, porque estaremos suspensos no movimento ondulante para frente e para trás. Existe uma interessante advertência no Sutta Nipata, mencionando que não se deve ter companheiros, pois isso evita o desenvolvimento de apegos. Isso resultaria nem em amor, nem em raiva, restando apenas a equanimidade, uma mente equilibrada em relação a tudo que existe. Com a equanimidade não estamos mais suspensos entre o bem e o mal, amor e raiva, amigo e inimigo, existe a capacidade da renúncia, de ir até o fundo onde a verdade pode ser encontrada.

Se quisermos descobrir a verdade básica, fundamental, de toda existência, precisamos praticar a renúncia. Esta inclui os nossos apegos mais sutis e os mais poderosos, muitos dos quais não são nem identificados como apegos.

Retornando ao símile da verdade encontrada no fundo do nosso ser, podemos ver que se estivermos apegados a algo, não seremos capazes de descer até o fundo. Estamos apegados às coisas, pessoas, idéias e opiniões, que consideramos serem nossas e acreditamos serem corretas e úteis. Esses apegos irão nos impedir de estabelecer contato com a verdade absoluta.

As nossas reações, gostos e desgostos, nos mantêm em suspenso. Apesar de ser mais agradável gostar de algo ou de alguém do que desgostar, ambos são no entanto resultado de apegos. Esta dificuldade está intimamente associada com as distrações na meditação. Do mesmo modo que temos apego pela comida que obtemos para o corpo, assim também temos apego pelo alimento para a mente, e assim os pensamentos vagueiam aqui e ali, agarrando gulodices. Enquanto fazemos isso, somos novamente mantidos em suspenso, movendo-nos dos pensamentos para a respiração e de volta para os pensamentos, mantendo-nos no mundo da dualidade. Quando a mente se comporta dessa maneira, ela não é capaz de alcançar a profundidade máxima.

O entendimento profundo possibilita a libertação do sofrimento. Ao penetrarmos o nosso íntimo com mais e mais profundidade, nenhum núcleo é encontrado e aprendemos a abandonar os apegos. Se encontrarmos ou não qualquer coisa dentro de nós, que seja pura, desejável, admirável ou impura e desagradável, não faz nenhuma diferença. Todos os estados mentais que possuímos e apreciamos nos mantêm na dualidade, onde estaremos suspensos em pleno ar, sentindo-nos muito inseguros. Eles não são capazes de dar um fim ao sofrimento. Num dado momento tudo parece estar bem no nosso mundo e amamos a todos, mas cinco minutos mais tarde poderemos reagir com raiva e rejeição.

Somos capazes de concordar com as palavras do Buda ou considerá-las como plausíveis, mas sem a certeza da experiência pessoal, isso nos trará um benefício limitado. Para obter o conhecimento direto deveríamos ser como um objeto pesado que não deve estar preso a nada, para que possamos mergulhar até o fundo de todas as obstruções, para enxergarmos a verdade luminosa. A ferramenta para isso é uma mente poderosa, uma mente de peso. Enquanto a mente estiver interessada em assuntos insignificantes, ela não terá o peso para conduzí-la à profundidade do entendimento.

Para a maioria das pessoas, a mente não faz parte da categoria de pesos pesados, e está mais para peso galo. O murro de um peso pesado produz realmente um efeito, o de um peso galo não é tão significativo. A mente peso galo tem apego aqui e ali a pessoas e às opiniões delas, às suas próprias opiniões, a toda dualidade de pureza e impureza, certo e errado.

Porque tomamos isso de modo tão pessoal, quando é verdadeiramente universal? Essa parece ser a maior diferença entre viver em paz e ser capaz de permitir que a mente penetre as camadas mais profundas da verdade, ou de viver em desavença consigo mesmo e com os outros. Nem a raiva, nem a cobiça são manifestações pessoais, ninguém possui sobre elas um direito singular, elas pertencem à humanidade.

Podemos aprender a abandonar essa idéia personalizada sobre os nossos estados mentais, o que nos libertaria de um sério impedimento. Cobiça, raiva e impurezas existem, da mesma maneira a não-cobiça e a não-raiva também existem. Podemos possuir todos eles? Ou será que possuímos esses estados em sucessão ou a cada cinco minutos cada um? E porque possuir qualquer um deles? Eles simplesmente existem e vendo isso, será possível permitir-nos mergulhar na profundidade da visão do Buda.

A verdade mais profunda que o Buda ensinou foi que não existe uma pessoa individual. Isso tem que ser aceito e experimentado no nível das emoções. Enquanto não abandonarmos a posse do corpo e mente, não será possível aceitar que não somos na verdade essa pessoa. Esse é um processo gradual. Na meditação aprendemos a abandonar as idéias e histórias e a ocupar-nos com o objeto da meditação. Se não as abandonarmos, não seremos capazes de mergulhar na meditação. Para isso a mente também tem que ser um peso pesado.

Podemos comparar a mente comum com os movimentos oscilantes que acompanham as ondas de pensamentos e sensações. O mesmo ocorre na meditação, por conseguinte precisamos nos preparar para obter a concentração. Podemos observar todos os estados mentais que surgem durante o dia e aprender a abandoná-los. A tranqüilidade e leveza que surgem desse processo se deve ao desapego. Se não praticarmos ao longo do dia, a nossa meditação se ressentirá porque não viemos para a almofada de meditação com o estado de espírito apropriado. Se alguém esteve durante o dia todo praticando o desapego, a mente estará preparada e poderá se desapegar durante a meditação também. E aí poderá experimentar a sua própria felicidade e pureza.

Algumas pessoas consideram os ensinamentos como um tipo de terapia, o que sem dúvida é correto, mas esse não é o objetivo último, apenas um dos seus aspectos secundários. Os ensinamentos do Buda conduzem ao fim do sofrimento, de uma vez por todas, não apenas por um instante quando as coisas não vão bem.

Ao termos uma experiência de renúncia, mesmo que apenas uma única vez, fica a prova, sem deixar nenhuma dúvida, de que isso significa livrarmo-nos de um pesado fardo. Ter que carregar a própria raiva e cobiça por todos os cantos é um fardo pesado, que, quando abandonado, nos resgata da dualidade dos julgamentos. É prazeroso ver-se livre dos pensamentos; as formações mentais são problemáticas.

Se formos bem sucedidos mesmo que uma ou duas vezes ao longo do dia em nos soltarmos das nossas reações, teremos tomado um grande passo e poderemos mais facilmente fazer o mesmo outras vezes. Teremos compreendido que uma emoção que surgiu poderá ser detida, não precisamos carregá-la conosco o dia todo. O alívio proveniente disso será a prova de que uma grande descoberta interior foi realizada e de que a simplicidade da não dualidade nos mostra o caminho para a verdade.

VII. Renúncia

Para abraçar o caminho espiritual inteiramente, ser capaz de nele crescer e percorrê-lo com uma sensação de segurança, é necessário renunciar. Renúncia não significa necessariamente raspar o cabelo ou vestir mantos. Renúncia significa abandonar todas as idéias e esperanças às quais a mente desejaria se apegar e reter, ter interesse e desejo de investigar. A mente deseja ter sempre mais do que quer que seja que esteja disponível. Se ela não consegue obter mais, ela então produz fantasias e imaginações e as projeta sobre o mundo. Isso nunca trará a verdadeira satisfação, paz interior, que apenas podem ser conquistadas por meio da renúncia. “Abandonar” é a palavra chave no caminho Budista, é a dissolução do desejo. É necessário compreender de uma vez por todas que “mais” não é “melhor.” É impossível chegar ao fim de “mais,” sempre há algo que está mais além. Mas com certeza é possível chegar ao fim de “menos,” que é uma abordagem muito mais inteligente.

Porque sentar isolado em meditação e arruinar as possibilidades de todas as oportunidades que o mundo oferece para o divertimento? Uma pessoa poderia viajar, dedicar-se a um trabalho desafiador, conhecer pessoas interessantes, escrever cartas ou ler livros, desfrutar um período agradável em algum outro lugar e realmente sentir-se tranqüila – ela poderia até mesmo encontrar um caminho espiritual distinto. Quando a meditação não alcança os resultados desejados, pode surgir o pensamento: “O que é que eu estou fazendo, porque estou fazendo isso, para que, qual o benefício disso tudo?” Então surge a idéia: “Eu na verdade não sou capaz de fazer isso muito bem, talvez eu devesse tentar outra coisa.”

O mundo reluz e promete tanto, mas nunca, nunca cumpre as suas promessas. Cada um de nós já experimentou inúmeras vezes as suas tentações e nenhuma delas trouxe real satisfação. A verdadeira satisfação, a plenitude da paz, sem faltar nada, a completa tranqüilidade desprovida de cobiça, não pode ser satisfeita no mundo. Não há nada que possa preencher os nossos desejos de forma completa e absoluta. Dinheiro, posses materiais, uma outra pessoa, embora essas coisas possam trazer alguma satisfação, no entanto, existe aquela dúvida incomodativa: “Talvez eu encontre alguma outra coisa, mais confortável, mais fácil, não tão exigente e acima de tudo algo novo.” Sempre, aquilo que é novo promete a satisfação.

A mente tem que ser entendida tal como ela é, mais um meio dos sentidos que tem a sua base no cérebro, da mesma forma como a visão tem a sua base no olho. Conforme os momentos mentais surgem e o contato com eles é estabelecido, passamos a acreditar naquilo que estamos pensando e até mesmo possuindo aquilo: “É meu.” Devido a isso, temos muito interesse nos nossos pensamentos e desejamos cuidar bem deles. É ponto pacífico que as pessoas cuidam melhor das suas coisas do que das coisas dos outros e assim, seguimos os nossos momentos mentais e acreditamos em todos eles. E no entanto, eles nunca trazem felicidade. O que eles trazem é esperança, preocupação e dúvida. Algumas vezes eles proporcionam divertimento e em outras depressão. Quando surgem as dúvidas e estas são levadas adiante, isto é, são acolhidas, elas podem conduzir- nos até o ponto em que não restará nenhuma prática espiritual que seja. No entanto, a única forma de provar que a vida espiritual traz realização é através da prática. A prova do pudim consiste em comê-lo. Ninguém poderá provar por nós; desejar que outrem prove de modo que apenas tenhamos que agarrar aquilo e nos alimentarmos é uma abordagem equivocada.

A satisfação que estamos buscando não é o que podemos conseguir para rechear esta mente e corpo. O buraco é demasiado grande para ser preenchido. O único modo de encontrar satisfação é abandonar as expectativas e desejos em relação a tudo aquilo que ocorre na mente, sem deixar escapar nada. Então não restará nada para ser preenchido.

O mal-entendido, que constantemente se repete, é esta típica atitude de: “Quero que me dêem. Quero que me dêem conhecimento, compreensão, amor bondade, consideração. Quero que me dêem o despertar espiritual.” Não há nada que possa ser dado para ninguém, exceto instruções e métodos. É necessário que cada um faça a sua tarefa diária de prática, para que essa tarefa resulte em purificação. A ausência de satisfação não pode ser remediada com o desejo de receber algo novo. Não temos sequer uma idéia clara de onde isso deve vir. Talvez do Buda, ou do Dhamma, ou podemos querer que venha do nosso mestre. Quiçá gostaríamos de obtê-lo da nossa meditação, ou de um livro. A resposta não está em obter algo que esteja fora de nós mesmos, mas sim em descartarmo-nos de tudo.

Do que precisamos nos livrar primeiro? De preferência das convulsões da mente que constantemente nos contam histórias fantásticas e inacreditáveis. No entanto, quando as ouvimos, nós mesmos acreditamos nelas. Uma forma de encará-las e descrer delas é escrevê-las. Elas parecerão absurdas quando estiverem escritas no papel. A mente sempre pode imaginar novas histórias, não há um fim nisso. A renúncia é a chave. Abandonar, soltar-se de tudo.

Renunciar também significa entregarmo-nos àquele conhecimento subjacente, subconsciente, de que o jeito mundano não funciona, de que há um outro jeito. Não podemos tentar permanecer no mundo e agregar algo à nossa vida, mas, ao invés disso, deveríamos desistir completamente das nossas ambições. Permanecer como somos e adicionar algo mais a isso – como é possível que isso funcione? Se alguém possui uma máquina que não funciona direito e apenas agrega uma peça a mais, não fará com que ela funcione. É necessário recondicionar a máquina toda.

Isso significa aceitar o nosso entendimento subjacente de que a forma tradicional de pensar não é útil. Dukkha existe sempre, repetidamente. Nunca pára, não é mesmo? Algumas vezes pensamos: “Deve ser devido a uma certa pessoa, ou talvez seja por causa do tempo.” Então o tempo muda ou aquela pessoa se vai, mas dukkha continua presente. Então não era aquilo e precisamos tentar encontrar outra coisa. Ao invés disso, precisamos nos tornar flexíveis e moldáveis e estar presentes com aquilo que realmente está surgindo sem todas as convulsões, conglomerações, proliferações da mente. Aquilo que surge pode ser puro ou impuro e precisamos saber como lidar com cada um.

Uma vez que comecemos a explicar e racionalizar, todo o processo novamente deixa de funcionar. Não precisamos pensar que devemos acrescentar algo para sermos perfeitos. Tudo deve ser descartado, tudo que é identificável, então nos tornaremos uma pessoa perfeita. A renúncia está em nos soltarmos da conceituação, do material mental que reivindica ser a pessoa que sabe. Quem conhece essa pessoa que sabe? São só idéias volteando, surgindo e desaparecendo. A renúncia não é uma manifestação externa, esta é apenas o seu resultado. A causa é interior, que é o que precisamos praticar. Se pensarmos num convento de monjas como o lugar para meditar, nos daremos conta de que a meditação não ocorre sem renúncia.

VIII. Isolamento Ideal

No Sutta Nipata encontramos um discurso do Buda intitulado “O Chifre do Rinoceronte” onde ele compara o isolamento do sábio ao rinoceronte indiano. O Buda elogia o estar só e o refrão em cada estrofe do sutta é: “Viva só como um rinoceronte.”

Existem dois tipos de isolamento, o mental, (citta-viveka), e o corporal, (kaya-viveka). Todos estão familiarizados com o isolamento corporal. Afastamo-nos e sentamos sozinhos num cômodo ou caverna, ou dizemos para as pessoas com as quais estamos vivendo, que queremos ficar a sós. As pessoas em geral apreciam esse tipo de isolamento por períodos curtos de tempo. Se esse isolamento é mantido, em geral é porque essa pessoa não é capaz de se relacionar com os outros ou sente medo em relação a eles, porque não existe amor suficiente no seu próprio coração. Muito frequentemente há uma sensação de solidão, que é prejudicial ao isolamento. A solidão é um estado mental negativo no qual a pessoa se sente despojada de amizades.

Quando se vive em família ou numa comunidade, algumas vezes é difícil obter o isolamento físico, pode até nem ser muito prático. Mas o isolamento físico não é o único tipo de isolamento que existe. O isolamento mental é um fator importante para a prática. A menos que a pessoa seja capaz de despertar em si mesma o isolamento mental, ela não será capaz de introspecção, de descobrir que mudanças dentro de si ela necessita fazer.

O isolamento mental significa antes de mais nada e principalmente não ser dependente da aprovação de terceiros, da conversa social, de um relacionamento. Não significa que a pessoa irá demonstrar inimizade em relação aos outros, apenas que a pessoa possui independência mental. Se uma pessoa for gentil conosco, muito bem. Se não for esse o caso, isso também está bem e tanto faz.

O chifre do rinoceronte é reto e tão forte que não somos capazes de curvá-lo. Será que as nossas mentes podem ser assim? O isolamento mental elimina a conversa fútil que é prejudicial ao desenvolvimento espiritual. Conversar sobre absolutamente nada, apenas para soltar vapor. Se permitirmos que o vapor escape de uma panela não seremos capazes de cozinhar a comida. A nossa prática pode ser comparada com a colocação de calor em nós mesmos. Se deixarmos o vapor escapar repetidamente, esse processo interno será interrompido. É muito melhor deixar que o vapor acumule e descobrir o que está cozinhando. Essa é a tarefa mais importante que podemos realizar.

Todos deveriam ter a oportunidade, todos os dias, de estar fisicamente sós por algum tempo, para que possam se sentir realmente sós, totalmente isolados. Algumas vezes poderemos pensar: “As pessoas estão falando a meu respeito.” Isso não importa, nós somos os donos do nosso kamma. Se falarem a nosso respeito é o kamma deles. Mas se ficamos preocupados, esse é o nosso kamma. Ter interesse naquilo que está sendo dito é o suficiente para demonstrar que dependemos da aprovação de outras pessoas. Quem está aprovando quem? Talvez os cinco khandhas, (corpo, sensação, percepção, formações mentais e consciência), estejam aprovando. Ou quiçá, os cabelos, os pelos do corpo, unhas, dentes e pele? Qual “eu” está aprovando, o bom, o mau, o medíocre ou talvez o não-eu?

A menos que possamos encontrar dentro de nós mesmos uma sensação de solidez, do centro onde não há movimento, sempre haverá a sensação de insegurança. Ninguém pode ser apreciado por todos, nem mesmo o Buda. Como estamos tomados pelas contaminações, sempre estamos vigiando as contaminações dos outros. Nada disso importa, e tudo isso não tem a menor importância. A única coisa importante é ter atenção plena; estar totalmente atento a cada passo do caminho, às ações praticadas, sensações e pensamentos. É tão fácil esquecer isso. Sempre há uma outra pessoa com quem conversar ou um outro café para beber. Assim é como o mundo vive, e no entanto os seus habitantes são muito infelizes. Mas o caminho do Buda conduz para além do mundo, para a felicidade independente.

Soltar o vapor, as conversas fúteis e a busca por amizades, essas são as coisas erradas que não devem ser feitas. Tentar descobrir o que as pessoas pensam a seu respeito é insignificante e irrelevante e não tem nada a ver com o caminho espiritual. O isolamento mental significa que a pessoa é capaz de estar só, ainda que no meio da multidão. Mesmo no meio de uma grande multidão de pessoas agitadas, a pessoa ainda é capaz de operar a partir do próprio centro, distribuindo amor e compaixão sem ser influenciada por aquilo que está acontecendo à sua volta.

Isso pode ser chamado de isolamento ideal e significa que a pessoa se afastou do futuro e do passado, o que é necessário para permanecer só e íntegra. Se houver apego ao futuro, então existe a preocupação, e se houver anseio pelo passado, então haverá ou desejo, ou rejeição. Essa é a tagarelice constante da mente, que não conduz ao isolamento mental.

O isolamento só pode ser experimentado plenamente quando há paz interior. De outro modo a solidão irá empurrar a pessoa para tentar remediar a sua sensação de vazio e perda. “Onde estão todos? Como posso permanecer sem amizades? Preciso conversar sobre os meus problemas.” A atenção plena é capaz de tomar conta disso tudo porque ela tem que surgir no momento presente e não tem nada a ver com o futuro nem com o passado. Ela nos mantém totalmente ocupados e evita que cometamos erros que fazem parte da natureza dos seres humanos. E quanto mais acurada for a atenção plena, menos freqüentes serão os erros. Erros no plano mundano também têm repercussões no caminho supramundano, porque eles ocorrem devido à falta de atenção plena, o que não permite que superemos o dukkha que nós mesmos nos causamos. Tentaremos repetidamente encontrar alguém a quem possamos culpar, ou alguém que nos possa entreter.

O isolamento ideal surge quando uma pessoa pode estar só ou com outros e permanecer íntegra, sem ser capturada pelos problemas dos outros. Poderemos responder da maneira apropriada, mas não seremos afetados. Todos temos a nossa vida interior e só poderemos conhecê-la bem quando a tagarelice mental for interrompida e pudermos nos ocupar com as nossas emoções mais íntimas. Uma vez que tenhamos testemunhado o que ocorre no nosso íntimo, vamos querer mudar isso. Apenas o Perfeitamente Desperto, (Arahant), possui uma vida interior que não necessita mudança. O nosso estresse interior e a falta de paz nos empurram para fora para encontrar alguém que possa remover aquele momento de dukkha, mas só nós, nós mesmos, podemos fazer isso.

O isolamento pode ser físico, mas essa não é a sua função principal. A mente em isolamento é aquela que é capaz de ter pensamentos profundos e originais. Uma mente dependente pensa de modo rotineiro, como todos pensam, porque ela anseia aprovação. Esse tipo de mente compreende de modo superficial, da mesma maneira que o mundo compreende, e não é capaz de captar a profundidade dos ensinamentos do Buda. A mente em isolamento está tranqüila porque não é influenciada.

É interessante que uma mente tranqüila, que só depende de si mesma, também é capaz de memorizar. Como uma mente assim não está repleta do desejo de eliminar dukkha, ela pode relembrar sem muita dificuldade. Esse é um dos benefícios adicionais. O principal benefício de uma mente em isolamento é a sua imperturbabilidade. Ela não é abalada e se mantém sem nenhum apoio, como uma árvore sólida que não necessita de suporte. Porque ela é poderosa por seus próprios méritos. Se a mente não possuir vigor suficiente para depender apenas de si mesma, ela não terá a força e determinação para realizar o Dhamma.

A nossa prática deve incluir o estar a sós durante algum tempo todos os dias para a introspecção e contemplação. Ler, ouvir e conversar diz respeito à comunicação com os outros, que em certas ocasiões é necessário. Mas é essencial ter tempo para a auto-investigação: “O que está ocorrendo no meu íntimo? O que estou sentindo? Isso é benéfico ou não? Estou plenamente satisfeito sozinho? Quanta preocupação tenho com o ego? O Dhamma é o meu guia ou estou confuso?” Se houver alguma névoa na mente, tudo que precisamos é de uma lanterna para penetrá-la. E essa lanterna é a concentração.

Saúde, riqueza e juventude não significam não-dukkha. Elas são um disfarce. A enfermidade, pobreza e velhice facilitam a compreensão da insatisfação na nossa existência. Quando estamos sós, esse é o momento de nos conhecermos. Podemos investigar o significado do Dhamma que ouvimos e sermos capazes de concretizá-lo nas nossas vidas. Podemos utilizar aqueles aspectos do Dhamma com os quais nos identificamos mais.

A mente solitária é uma mente poderosa, porque ela sabe como permanecer imóvel. Isso não significa deixar completamente de se associar com as pessoas, isso seria falta de amor bondade, (metta). Uma mente solitária é capaz de estar sozinha e introspectiva e também de amar os outros. Viver numa comunidade do Dhamma é o ideal para a prática.

A meditação é o meio de obter a concentração, que é a ferramenta para dissipar a névoa que envolve a todos que não são um Arahant. Certas vezes, na vida em comunidade, existe a união, o amor e a assistência. Isso deveria ser o resultado de metta e não da tentativa de evadir dukkha. Na próxima vez que iniciarmos uma conversa, deveríamos investigar primeiro: “Porque estou tendo esta discussão? Ela é necessária ou estou entediado e quero fugir dos meus problemas?”

A plena consciência é o fator mental que se une com a atenção plena proporcionando direção e objetivo. Examinamos se a nossa linguagem e ações possuem o propósito correto, se estamos empregando meios hábeis e se o objetivo inicial foi alcançado. Se não tivermos um rumo bem definido, a conversa fútil surgirá como conseqüência. Até mesmo na meditação a mente faz isso, devido à falta de treinamento. Quando praticamos a plena consciência, precisamos parar por um momento e examinar a situação completa antes de seguir adiante. Esse poderá vir a ser um dos nossos hábitos hábeis, nem sempre encontrado no mundo.

Um importante aspecto dos ensinamentos do Buda é a combinação da plena consciência com a atenção plena. O Buda com freqüência os recomenda como o caminho para o fim do sofrimento e nós precisamos praticá-los nos nossos miúdos esforços diários. Eles podem consistir em aprender algo novo, memorizar uma sentença do Dhamma, memorizar uma estrofe de um sutta, um novo insight acerca de si mesmo, a compreensão de um aspecto da realidade. Uma mente como essa obtém força e autoconfiança.

A renúncia é a maior ajuda para conquistar a autoconfiança. A pessoa se dá conta de que é capaz de lidar com praticamente tudo, por exemplo a comida, por um bom tempo. Certa vez o Buda foi a um vilarejo no qual ninguém depositava fé nele. Ele não recebeu nenhum alimento, ninguém no vilarejo deu a ele qualquer atenção. Ele foi para os arredores e sentou sobre um pouco de palha e meditou. Um outro asceta que passou por ali e viu que o Buda não havia recebido nenhum alimento se condoeu dele: “Você deve estar se sentindo muito mal sem ter o que comer. Eu sinto muito. Você nem mesmo tem um lugar adequado para dormir, apenas palha.” O Buda respondeu: “Alimentamo-nos de alegria. A alegria interior pode alimentar-nos por vários dias.”

Uma pessoa pode estar bem sem muitas coisas, desde que elas tenham sido abandonadas voluntariamente. Se alguém tomar as nossas posses e resistirmos, é dukkha. Mas quando praticamos a renúncia, ganhamos força e criamos as condições para que a mente seja auto-suficiente. A autoconfiança surge e cria uma espinha dorsal realmente forte. A renúncia ao companheirismo mostra se somos auto-suficientes.

O Buda não advogava práticas ascéticas exageradas e prejudiciais. Mas nós poderíamos abrir mão, por exemplo, das conversas à tarde e ao invés disso meditar. Depois disso, a mente irá se sentir satisfeita com o seu próprio esforço. Quanto mais esforço puder ser feito, mais satisfação surgirá.

Nós precisamos de uma mente solitária para a meditação, portanto precisamos praticá-la durante algum tempo a cada dia. A mente em isolamento possui dois atributos; um é a atenção plena e a plena consciência e o outro é a introspecção e a contemplação. Ambos fazem com que a mente se unifique. Só a união produz a força e a unificação traz o poder.

IX. Dukkha para Conhecimento e Visão

O ciclo da origem dependente, (paticcasamuppada), começa com a ignorância, (avijja), passando pelas formações cármicas, (sankhara), consciência de renascimento, mentalidade-materialidade, contato nos sentidos, sensação, apego, ser/existir, nascimento, terminando com a morte. Nascer significa morrer. Ao longo dessa seqüência existe um ponto para a escapatória – da sensação para o apego.

Enquanto esta é chamada de origem dependente mundana, (lokiya),o Buda também ensinou uma série de causa e efeito supramundana, transcendente, (lokuttara).A origem dependente mundana inicia com o sofrimento/insatisfação, (dukkha). Dukkha deve ser visto como aquilo que na verdade é, isto é, o melhor ponto de início para a nossa jornada espiritual. A menos que tenhamos conhecido, tenhamos visto dukkha, não teremos motivo para praticar. Se não tivermos reconhecido a abrangência de dukkha, não teremos interesse de nos livrar das suas garras.

A origem dependente transcendente começa com a consciência e conhecimento do inescapável sofrimento da condição humana. Ao refletir sobre isso, não mais tentaremos encontrar uma saída através de intentos mundanos, seja através da obtenção de mais informações ou conhecimentos ou de mais riqueza, ou mais posses, ou mais amigos. Ao ver dukkha como uma condição da qual não se pode escapar, atada à existência, não nos sentimos mais oprimidos por ela. É certo que existem trovões e relâmpagos, assim não tentamos negar o tempo. Tem que haver trovões, relâmpagos e chuva, para que possamos cultivar alimentos.

Com dukkha é o mesmo. Sem isso, a condição humana não existiria. Não haveria renascimento, envelhecimento e morte. Ao ver dukkha dessa forma, a nossa resistência se desfaz. No momento em que não houver mais repulsa em relação a dukkha, o sofrimento diminuirá muito. É a nossa resistência que cria o desejo de nos livrarmos de dukkha, o que só faz com que ele piore.

Tendo compreendido dukkha dessa forma, a pessoa poderá ser suficientemente afortunada para entrar em contato com o verdadeiro Dhamma, o ensinamento do Buda. Isso se deve ao bom kamma da pessoa. Existem inúmeras pessoas que nunca entram em contato com o Dhamma. Elas podem até mesmo nascer num lugar em que o Dhamma seja ensinado, mas elas não terão a oportunidade de ouví-lo. Existem ainda muitas outras pessoas que não estão em busca do Dhamma, porque elas ainda buscam a rota de escape através de intentos mundanos, procurando na direção errada. Ao chegar à conclusão de que o mundo não irá proporcionar a verdadeira felicidade, ela também terá que ter um bom kamma para ser capaz de ouvir o verdadeiro Dhamma. Se essas condições surgirem então o resultado será a fé.

A fé tem que estar baseada na confiança. Se esta estiver ausente, o caminho não se abrirá. A pessoa confia como uma criança que segura a mão de um adulto para atravessar a rua. A criança acredita que o adulto irá prestar atenção ao tráfego para que não ocorra um acidente. A pequena criança não tem capacidade para julgar quando é seguro atravessar, mas ela confia em alguém com mais experiência.

Nós somos como crianças comparadas ao Buda. Se pudermos ter a inocência de uma criança, então será possível entregarmo-nos com generosidade ao ensinamento e à prática, segurando a mão do verdadeiro Dhamma que nos guiará. A vida e a prática são simplificadas quando o julgamento e a ponderação das opções são removidas. Não mais: “Eu deveria fazer isso de outra forma ou ir a outro lugar, ou descobrir como isso é feito por outras pessoas.” Tudo isso são possibilidades, mas elas não favorecem a boa prática nem nos ajudam a livrar-nos de dukkha. A confiança no Dhamma ajuda a manter a mente equilibrada. A pessoa tem que descobrir por si mesma se essa é a rota de escape correta, mas se não tentarmos, não saberemos.

Se dukkha for ainda considerado como uma calamidade, não teremos espaço suficiente na mente para ter confiança. A mente estará repleta de tristeza, dor, lamentação, esquecendo que todos nós estamos experimentando os resultados de kamma e nada mais. Isso faz parte da condição humana, a sujeição ao próprio kamma.

A resistência a dukkha drena a nossa energia e a mente fica sem condições de alcançar a sua plena capacidade. Se dukkha for visto como o ingrediente necessário para estimular o abandono de samsara, então a atitude positiva da pessoa indicará a direção correta. Dukkha não é uma tragédia, mas um ingrediente básico para o insight. Esse não deve ser apenas um processo intelectual, mas para ser sentido com o próprio coração. É muito fácil pensar nisso e não fazer nada a respeito. Mas quando o nosso coração é verdadeiramente tocado, a confiança no Dhamma surge como a escapatória de todo o sofrimento.

O Dhamma se opõe totalmente ao pensamento mundano, no qual o sofrimento é considerado como uma grande desgraça. No Dhamma o sofrimento é visto como o primeiro passo para transcender a condição humana. A compreensão de dukkha tem que ser sólida, para despertar a confiança naquela parte dos ensinamentos que ainda não foram experimentados por si próprio. Se a pessoa já tiver tentado muitas outras rotas de escape e nenhuma delas funcionou, então será mais fácil depositar esse tipo de confiança, como uma criança, caminhando ao longo dessa difícil senda sem se desviar para a esquerda ou direita, sabendo que o ensinamento é verdadeiro e permitindo que ele a guie. Esse tipo de fé produz satisfação, sem a qual o caminho será um pesado fardo e não irá florescer. A satisfação é um ingrediente necessário e essencial na vida espiritual.

A satisfação não deve ser confundida com o prazer, excitação ou exuberância. A satisfação é uma sensação de tranqüilidade e contentamento, é a sabedoria daquele que encontrou aquilo que transcende todo o sofrimento. As pessoas algumas vezes têm a idéia equivocada de que ser um santo ou devoto significa ter uma face tristonha e caminhar desolado. No entanto, diz-se que o Buda nunca chorou, e em geral ele é retratado com um ligeiro sorriso nos lábios. A santidade não é sinônimo de tristeza, ela significa integridade. Sem satisfação não há integridade. A satisfação interior traz consigo a certeza de que o caminho é irrepreensível, a prática produz frutos e a conduta é apropriada.

Precisamos sentar para meditar com uma sensação de satisfação, e assim toda a experiência de meditação irá culminar em felicidade. Isso nos traz tranqüilidade, visto que não precisamos mais procurar por satisfação no exterior. Sabemos que apenas precisamos olhar para o nosso íntimo. Não há nenhum outro lugar para ir e nada que fazer, tudo acontece no nosso íntimo. Essa tranqüilidade ajuda na meditação da concentração, e cria a sensação de estar no lugar certo no momento correto. Isso traz uma paz mental, que facilita a meditação e conduz à eliminação da dúvida, (vicikicha).

A dúvida é a precursora da inquietação, a satisfação produz calma. Não precisamos nos preocupar com o nosso ou com o futuro do mundo, é apenas uma questão de tempo até que compreendamos a realidade absoluta. Quando o caminho, a prática e o esforço se unem, os resultados surgirão inevitavelmente. É essencial ter completa confiança em tudo que o Buda disse. Não podemos selecionar as idéias nas quais desejamos acreditar, porque coincidentemente elas estão de acordo com aquilo que apreciamos, e descartar as demais. Não tem escolha, é tudo ou nada.

A tranqüilidade ajuda a estabelecer a concentração. Dukkha em si pode nos levar à concentração adequada se soubermos como manuseá-lo. Mas não devemos rejeitá-lo, pensando que é uma peculiaridade do destino que nos trouxe toda essa tristeza, ou de pensar que outras pessoas é que são as responsáveis. Se empregarmos dukkha para nos empurrar na direção do caminho, então a concentração adequada poderá surgir.

A concentração correta permite que a mente desenvolva todo o seu potencial. A mente que é limitada, obstruída e contaminada não é capaz de compreender a profundidade dos ensinamentos. Ela pode ter indícios de que algo extraordinário está disponível, mas será incapaz de penetrar a profundidade daquilo. Apenas a mente concentrada é capaz de superar as suas limitações. Ao fazer isso, ela poderá experimentar o “conhecimento e visão das coisas como estas realmente são.”

O Buda freqüentemente usava essa frase “conhecimento e visão das coisas como elas realmente são”, (yatha-bhuta-ñana-dassana). Isso é diferente de como nós pensamos que as coisas são ou poderiam ser, ou como gostaríamos que fossem, esperançosos de que sejam confortáveis e agradáveis. Mas ao invés disso, o nascimento, envelhecimento, enfermidade e morte, não obter aquilo que se deseja, ou obter aquilo que não se deseja, a constante percepção daquilo que não gostamos porque não apóia a nossa crença num eu. Ao compreender e ver as coisas como elas realmente são, deixamos de lado esse desgosto.

Veremos que dentro desse plano de impermanência, insatisfação e ausência de uma essência, (anicca, dukkha, anatta), não há nada que possa ser agarrado e reconhecido como sólido e gratificante. Nenhuma pessoa, nenhuma possessão, nenhum pensamento, nenhuma sensação. Nada a que nos apeguemos poderá ser reconhecido como estável e que proporciona apoio.

Esse é o entendimento correto que está além da nossa percepção comum do dia a dia. Ele resulta da concentração correta e provém do lidar com dukkha de forma positiva, acolhedora. Quando tentamos escapar de dukkha quer seja tentando esquecê-lo, fugindo dele, culpando outra pessoa, ficando deprimido ou sentindo pena de nós mesmos, estaremos criando mais dukkha. Todos esses métodos estão baseados na auto-delusão. O conhecimento e visão das coisas como elas realmente são é o primeiro passo no nobre caminho, todo o demais faz parte do trabalho preliminar.

Algumas vezes o nosso entendimento pode parecer com um daqueles quadros misteriosos com os quais as crianças brincam. Você olha e vê o desenho, e em seguida ele desaparece. Quando algum aspecto do Dhamma é claramente visível para nós, devemos continuar ressuscitando essa visão. Se ela for correta, dukkha não nos atormentará, será só dukkha. O envelhecimento, enfermidade e morte não parecerão amedrontadores. Não há nada que temer, porque tudo se desfaz continuamente. Este corpo se desintegra e a mente muda a cada momento.

Sem conhecimento e visão da realidade, a prática será difícil. Depois de obter essa clara percepção, a prática é a única coisa possível a ser feita. Todo o restante será apenas um assunto secundário e uma distração. Do conhecimento e visão surge o desencantamento com aquilo que o mundo tem para oferecer. Todo aquele brilho que parece ser ouro, torna-se o ouro dos tolos, que não produz satisfação. Isso nos dá prazer por um momento e desprazer no momento seguinte e tem que ser buscado continuamente. O mundo dos sentidos tem nos ludibriado com tanta freqüência que nós ainda estamos enredados nele, ainda experimentando dukkha, a não ser que a verdadeira visão surja.

Existe um cartaz disponível na Austrália em que se lê: “Vida, esteja nela.” Não seria melhor se dissesse, “Vida, esteja fora dela?” A vida e a existência estão atadas pela constante renovação dos contatos nos nossos sentidos, ver, ouvir, saborear, tocar, cheirar e pensar. Apenas quando tivermos a clara percepção, o desencantamento se estabelecerá e então o contato sensual mais maravilhoso não nos levará mais a reagir. Esse contato existirá, mas não tocará o nosso coração. Mara,o sedutor, terá perdido o controle e terá sido conduzido até a porta de saída. Ele estará esperando na soleira da porta para novamente se insinuar, na primeira oportunidade, mas ele não estará mais assentado na parte de dentro, com todo conforto.

Isso traz muita segurança e satisfação ao coração. A pessoa não estará inclinada a abandonar esse caminho de prática. Quando Mara ainda estiver chamando, não haverá paz no coração. Não é possível ter paz e satisfação, porque sempre há algo novo para nos tentar. Com o conhecimento e visão das coisas como elas realmente são e o subseqüente desencantamento, compreendemos que o caminho do Buda nos leva à tranqüilidade, paz e o fim de dukkha.

Dukkha é realmente o nosso amigo mais leal, nosso patrocinador mais fiel. Nunca encontraremos um outro amigo ou companheiro igual, se dukkha for visto da forma correta, sem resistência ou rejeição. Quando usamos dukkha como nosso incentivo para a prática, a gratidão e o reconhecimento surgirão. Assim eliminamos o tormento da dor e a transformamos na nossa experiência mais valiosa.

X. As Nossas Tendências Subjacentes

A maioria das pessoas tem a tendência de recriminar a si mesmas ou os outros por tudo aquilo que consideram errado. Algumas preferem criticar principalmente os outros, algumas preferem criticar a si mesmas. Nenhuma dessas opções é benéfica, nem traz paz de espírito. Pode ajudar muito, compreender a realidade que impera dentro de cada ser humano através do conhecimento das tendências subjacentes, (anusaya).

Se compreendermos que todos os seres humanos possuem essas tendências, então estaremos menos inclinados a fazer críticas ou a ficarmos perturbados ou ofendidos e mais inclinados a aceitar com equanimidade. Poderemos ficar mais propensos a trabalhar esses aspectos negativos se nos tornarmos conscientes deles em nós mesmos.

As tendências subjacentes são mais sutis que os cinco obstáculos, (pañca nivarana): os obstáculos são mais toscos e se apresentam dessa forma. Desejo sensual: querer aquilo que agrada aos sentidos. Má vontade: ficar irado, perturbado. Preguiça e torpor: estar totalmente desprovido de energia. A preguiça se refere ao corpo, o torpor à mente. Inquietação e ansiedade: sentir-se constrangido, intranqüilo. Dúvida: não saber qual direção tomar. Esses cinco são facilmente discerníveis em nós mesmos e nos outros. Mas as tendências subjacentes são mais difíceis de serem determinadas com precisão. Elas são as fontes ocultas das quais surgem os obstáculos, e para livrar-se delas é necessário ter aguçada atenção plena e uma grande dose de discernimento.

Depois de lidar com os cinco obstáculos dentro de si mesmo, e até certo ponto ter deixado de lado os seus aspectos mais grosseiros, é possível começar a lidar com as tendências subjacentes. A própria palavra sugere a característica dessas tendências, isto é, as suas raízes são profundamente arraigadas e por isso difíceis de serem vistas e eliminadas.

As duas primeiras tendências são parecidas com os obstáculos, sensualidade e aversão, e são as bases subjacentes para o desejo sensual e a má vontade. Mesmo quando o desejo sensual foi em grande parte abandonado e a má vontade não mais surge, a disposição para a sensualidade e má vontade ainda permanecem.

A sensualidade é parte integrante do ser humano e se manifesta através do apego e reação àquilo que é visto, ouvido, cheirado, saboreado, tocado e pensado. A pessoa se preocupa com as suas sensações sem ter ainda compreendido que os objetos sensuais são nada mais que fenômenos impermanentes que surgem e desaparecem. Enquanto a ausência desse profundo insight ainda predominar, a pessoa atribuirá importância às impressões que surgem através dos sentidos. A pessoa é atraída por elas e busca nelas o prazer. Quando os sentidos ainda desempenham um papel importante numa pessoa, existe a sensualidade. O homem é um ser sensual. Há um verso que descreve a nobre Sangha como tendo “pacificado os sentidos.” O “Discurso do Amor Bondade”, (Karaniyametta Sutta – Sn I.8), descreve o bhikkhu ideal como aquele com “os sentidos acalmados.” Em muitos suttas o Buda disse que a eliminação do desejo sensual é o caminho para Nibbana.

A sensualidade como um elemento arraigado nos seres humanos tem que ser transcendida com um grande esforço e isso não pode ser feito sem insight. É impossível ter êxito só reconhecendo: “a sensualidade não é benéfica, eu vou abandoná-la.” É necessário que a pessoa obtenha o insight de que esses contatos sensuais não possuem valor intrínseco em si mesmos. Existe a junção da base sensual, (olho, ouvido, nariz, língua, pele, mente), com o objeto sensual, (visão, som, aroma, sabor, toque, pensamento), e a consciência nos sentidos, (ver, ouvir, cheirar, saborear, tocar, pensar), para constituir o contato. Isso é tudo que acontece. Enquanto a pessoa reagir a esses contatos como se eles tivessem importância, haverá sensualidade. Onde há sensualidade, existe também aversão, as duas caminham juntas. A sensualidade é satisfeita quando o contato sensual foi prazeroso. A aversão surge quando o contato sensual foi de desprazer. Não é necessário que ela se manifeste como raiva, gritaria, fúria, ódio ou mesmo resistência. É apenas a aversão que resulta do desprazer, do sentir-se desconfortável e inquieto. Isso faz parte de um ser humano sensual.

A sensualidade e a aversão só desaparecem para aquele que não retorna, (Anagami). O último estágio antes da Iluminação plena: aquele que não retorna para este mundo, e realiza Nibbana nas “Moradas Puras”. Mesmo aquele que entrou na correnteza, (Sotapanna), e aquele que retorna uma vez, (Sakadagami), respectivamente o primeiro e o segundo estágio nas realizações nobres, ainda são importunados pelo dukkha da sensualidade e da aversão.

Se alguém imagina que o impulso que cria a sensualidade ou a aversão está fora de si mesmo, então ele ainda não vislumbrou o início do caminho. É necessário compreender que a reação é nossa para que possamos começar o trabalho dentro de nós. Se nem sequer nos damos conta do que está ocorrendo, como poderemos fazer algo a respeito? É um processo que ocorre constantemente, sem descanso, de modo que temos inúmeras oportunidades para nos tornarmos conscientes do nosso mundo interior.

Tornar-se consciente ainda não significa que poderemos eliminar as nossas reações. Tem que existir o entendimento da futilidade de uma resposta inábil e o esforço para investigar as causas. É fácil perceber que a sensualidade e a aversão são as tendências subjacentes que criam o desejo sensual e a má vontade. Esse insight deveria despertar um pouco de aceitação e tolerância para com as próprias dificuldades e as dificuldades dos outros. Se isso está acontecendo constantemente com todas as pessoas, então com o que vamos nos aborrecer? A única coisa a ser feita é trabalhá-las, usá-las como objeto de contemplação, (kammatthana), e introspecção. É muito bom utilizar as próprias dificuldades como um método na tarefa de purificação.

As nossas tendências e obstáculos estão todos interconectados. Se alguém for capaz de diminuir um deles, os outros também se tornarão menos obstrutivos, perderão o seu peso e deixarão de ser tão atemorizantes. As pessoas em geral temem as suas próprias reações. É por isso que freqüentemente elas se sentem ameaçadas pelos outros; não é que elas temam tanto a reação dos outros, mas muito mais a própria reação. Elas se sentem inseguras, temendo tornar-se agressivas, enraivecidas e daí perdendo algo da sua auto- imagem.

Ter uma auto-imagem é bastante prejudicial, porque ela está baseada na ilusão da permanência. Tudo muda constantemente, inclusive nós mesmos, enquanto que uma auto-imagem pressupõe estabilidade. Num momento podemos ser sensuais, no momento seguinte enraivecidos. Algumas vezes estamos calmos, outras inquietos. Qual desses somos nós? Ter uma auto-imagem cria um conceito de permanência que nunca pode ter qualquer sustentação nos fatos. Isso bloqueia o insight das tendências subjacentes pois a pessoa estará cega para aquilo que não se encaixa na sua auto-imagem.

A terceira tendência subjacente é a dúvida ou hesitação. Se alguém tem dúvida, ele hesita: “O que farei em seguida?” A pessoa duvida do próprio caminho, das suas habilidades e de como prosseguir. Devido à hesitação, a pessoa não usa o tempo de forma sábia. Algumas vezes ela irá desperdiçá-lo ou se entregar a atividades que não trazem benefício. A dúvida significa que a pessoa não possui uma visão interior para guiá-la, mas está obcecada pela incerteza. A dúvida e a incerteza estão presentes nos nossos corações devido a uma sensação de insegurança. Temos medo de não estar seguros. Mas não há segurança em lugar nenhum, a única segurança que pode ser encontrada é Nibbana. Esse medo e a insegurança no coração fazem a dúvida e a hesitação surgirem. Se os deixássemos para trás e não lhes déssemos atenção, poderíamos progredir com muito mais facilidade e realizar muito mais.

A dúvida e a hesitação são abandonadas ao entrar na correnteza. Aquele que realizou o primeiro Caminho e Fruto não tem mais dúvidas, porque ele teve a experiência pessoal da realidade incondicionada, totalmente diferente da realidade na qual vivemos. Ele agora poderá seguir adiante sem preocupação ou medo. Não há dúvida em relação àquilo que é experimentado diretamente. Se dissermos para uma criança: “Por favor não coloque a mão no fogão, pois você poderá se queimar,” é bem possível que a criança irá assim mesmo colocar a mão no fogão. Ao tocar e experimentar a sensação dolorosa da queimadura, ela com certeza nunca mais irá tocá-lo. A experiência elimina a dúvida e a hesitação.

A próxima tendência subjacente é a idéia incorreta, (ditthi), de relacionar tudo aquilo que ocorre com um “eu.” Isso acontece constantemente e pode ser observado com facilidade, pois isso se passa com todas as pessoas. Muito poucas pessoas compreendem: “Isso é apenas um fenômeno mental.” Elas acreditam: “Eu penso.” Quando há dor no corpo, poucas dirão: “É apenas uma sensação desagradável.” Elas dirão: “Eu estou me sentindo muito mal,” ou, “Eu tenho uma dor terrível.” Essa reação a tudo aquilo que ocorre como “eu” é devida a uma tendência subjacente tão arraigada que requer um grande esforço para afrouxar a sua influência.

Deixar de lado a idéia incorreta de um “eu” não significa apenas compreender intelectualmente que não existe um “eu” verdadeiro. O que é necessário é uma visão interior de todo esse conglomerado de mente e corpo como nada mais que meros fenômenos desprovidos de um dono. O primeiro passo é dado ao entrar na correnteza, quando o entendimento correto acerca do “eu” surge, embora todos os apegos aos conceitos de um eu só sejam abandonados pelo Arahant.

Em seguida vem a presunção e orgulho, (mana), que neste caso significa ter um certo conceito acerca de nós mesmos, tal como ser um homem ou uma mulher, jovem ou velho, belo ou feio. Concebemos idéias daquilo que queremos, sentimos, pensamos, sabemos, possuímos e do que somos capazes de fazer. Todas essas conceituações criam a noção de posse e nos orgulhamos das posses, conhecimentos, habilidades, sentimentos e de ser alguém especial. Esse orgulho pode estar escondido profundamente em nós mesmos e pode ser difícil de ser encontrado, necessitando uma escavação introspectiva. Isso se deve ao fato de uma grande parte de todo o nosso ser estar envolvido. Quando dizemos: “Agora encontre essa noção sobre ser uma mulher,” a resposta com freqüência é: “Claro que sou uma mulher, o que mais poderia ser?” Mas enquanto “eu sou” qualquer coisa, mulher, homem, criança, estúpido ou inteligente, “eu estou” distante de Nibbana. Qualquer conceituação que eu atribua a mim mesma impede o meu progresso.

A tendência subjacente da presunção e orgulho só é desenraizada pelo Arahant. Não existe uma relação direta com algum dos obstáculos que possa ser discernida nesses casos, mas a concepção de um “eu” e a idéia incorreta de um “eu” são as principais manifestações da delusão, a raiz principal de todas as contaminações.

Em seguida, vem o apego à existência ou desejo por ser/existir, (bhavaraga). Isso é a nossa síndrome de sobrevivência, o apego à permanência aqui, o fato de não querermos abrir mão disso, de não estarmos preparados para morrer hoje. Temos que aprender a estar preparados para morrer agora, sem desejar morrer, mas estar preparados para isso. Desejar morrer é o outro lado da mesma moeda do apego à existência. É tentar livrar-se da existência porque a vida é dura demais. Mas estar preparado para morrer agora significa que o apego à situação de ser alguém e de estar aqui para provar isso, foi abandonado, pois isso foi reconhecido como uma falácia. Nesse instante o entendimento incorreto de um “eu” foi eliminado.

O apego à existência nos conduz a uma síndrome de dependência. Queremos que tudo corra bem conosco e nos ressentimos se isso não acontece. Isso cria a aversão e a sensualidade. Freqüentemente, nos esquecemos que somos apenas hóspedes aqui neste planeta e que a nossa visita é limitada e pode acabar a qualquer momento. Esse apego à condição de estar vivo traz muita dificuldade a todos nós porque nos projeta para o futuro fazendo com que não estejamos no momento presente. Se não vivermos no presente, estaremos perdendo completamente a oportunidade de estar vivos. Não há vida no futuro, é tudo imaginação, conjecturas, uma esperança, uma súplica. Se realmente queremos estar vivos e experimentar as coisas como elas são, precisamos estar no aqui e agora, presentes a cada momento. Isso implica no abandono do apego àquilo que possa vir a ocorrer conosco no futuro, especialmente se iremos ou não continuar a existir. Existir neste momento é o suficiente. Ser capaz de abandonar esse apego significa abandonar o futuro, e só então haverá sólida atenção plena, real atenção e plena consciência.

O apego à existência irá sempre nos dar a idéia de que algo melhor está por vir se esperarmos um pouco mais, e isso fará com que reneguemos o esforço. O esforço só pode ser feito agora, quem sabe o que o amanhã trará?

A ultima das sete tendências é a ignorância, (avijja). Ignorar as Quatro Nobre Verdades. A ignorância é o assim chamado ponto de início na cadeia da causa e efeito que repetidamente nos traz de volta ao nascimento e morte. A ignorância opõe-se à sabedoria, e neste caso ela diz respeito ao fato de desconsiderarmos a realidade por não compreendermos que todo o nosso dukkha provém do nosso desejo, mesmo que esse desejo seja saudável. Se continuarmos a ignorar as duas primeiras nobre verdades, sem falar na terceira verdade, que é Nibbana, estaremos enredados em dukkha. A nossa tendência subjacente da ignorância acaba resultando por fim na idéia incorreta de um “eu” – a concepção de um “eu” – mostrando-nos a interconexão de todas as tendências subjacentes. Sem a ignorância não haveria nenhuma sensualidade nem aversão, nem hesitação ou dúvida, nem entendimento incorreto, nem presunção e orgulho, nem apego à existência.

É muito benéfico tomar a característica que repetidamente mais cria dificuldades para nós e fazer dela o nosso foco de atenção. Como as tendências estão todas interconectadas, minimizando uma, irá ajudar a reduzir as demais numa proporção mais controlável.

Ver essas tendências subjacentes em nós mesmos requer uma significativa dose de atenção para consigo mesmo, o que exige tempo e isolamento. Não é possível fazer isso enquanto se conversa com os outros. Se a mente estiver clara é possível fazer isso durante as sessões de meditação ou através da contemplação.

A contemplação é um auxiliar válido da meditação, um importante companheiro que está sempre direcionado para o insight, enquanto a meditação poderá algumas vezes estar direcionada para a tranqüilidade. Contemplação significa olhar para dentro e tentar ver aquilo que estiver surgindo: “O que é que me incomoda?” Com total honestidade, lembrando das tendências subjacentes, sabendo que todos nós temos essas tendências, podemos nos perguntar: “Como elas se manifestam em mim?” Uma vez que isso tenha sido visto, será válido contemplar: “O que posso fazer para eliminar essa tendência em particular ou pelo menos minimizá-la?” Cada um deveria dedicar algum tempo todos os dias para a contemplação. Se alguém passa o dia todo sem qualquer introspecção, não poderá ter esperança de alcançar uma introspecção mais profunda durante a sessão de meditação e uma necessita da outra.

XI. Sem Sofrimento, Imaculado e Seguro

Sem sofrimento, imaculado e seguro são três atributos de um Iluminado, (Arahant). Sem sofrimento: sem dukkha; Imaculado: sem contaminações; e Seguro: sem medo. É óbvio que esses três são extremamente desejáveis, já que eles constituem a felicidade. Quando pensamos que estas são as características de um Arahant, poderemos nos perguntar: “Isso está tão distante de mim, como posso alcançar algo tão inatingível?” Pode surgir a convicção de que essa realização seja grande demais para ser considerada por uma pessoa.

Todos sabemos o que significa ter sofrimento, (dukkha). Estamos familiarizados com as nossas contaminações, quando ficamos contrariados, preocupados, ansiosos, invejosos ou ciumentos. Todos experimentamos o medo. Pode ser o medo da nossa própria morte ou daqueles que amamos, ou o medo de não sermos amados, elogiados, aceitos, ou o medo de não realizarmos os nossos objetivos, ou o medo de parecermos tolos.

Podemos também experimentar o oposto desses três estados. As sementes estão dentro de nós, de outra forma a Iluminação seria um mito. É possível ter momentos em que estamos sem sofrimento, imaculados e seguros. Se alguém alcançar boa concentração na meditação, nessa ocasião dukkha não irá surgir. Apenas a unicidade num ponto. Nenhuma impureza pode entrar na mente pois ela estará ocupada. A mente ou está com as contaminações ou está concentrada, o que é maravilhoso, embora possa durar apenas um momento. Não haverá medo porque tudo estará bem naquele momento. Quanto mais freqüentemente renovemos esses momentos de estarmos sem sofrimento, imaculados e seguros, mais eles se tornarão parte de nós mesmos e assim poderemos estar revertendo a eles novamente.

Só a lembrança de que é possível, e a tentativa de reavivar um pouco essas sensações, fará com que esse estado penetre na pessoa como parte da sua constituição. Do mesmo modo que uma pessoa que tema não ser aceita, ou preocupada com as suas realizações, experimentando a falta de autoconfiança, irá agir sempre de modo correspondente. Ele ou ela não necessitam nem fazer um esforço, só com a recordação dos seus medos e eles estarão desempenhando o mesmo papel outra vez. O mesmo se aplica aos estados mentais libertos.

Cada momento de concentração durante a meditação é um momento sem contaminações, sem sofrimento e sem medo. Esse tipo de experiência tem que ser duplicado repetidamente. Dessa forma reforçamos os nossos estados mentais libertos e sempre que nos lembrarmos deles poderemos retê-los e agir de acordo com eles, quer seja nas ocasiões comuns ou nas difíceis. As impurezas não precisam estar surgindo constantemente, existem intervalos nos quais não existe a má vontade, apenas o amor bondade, (metta), nenhum desejo sensual, apenas a generosidade e a renúncia.

O desejo sensual significa querer, a renúncia significa dar, abrir mão. Quando damos, não estamos desejando, exceto se ambicionarmos o aplauso ou a gratidão. Se alguém dá apenas com o propósito de dar, então existe um momento sem contaminações. O mesmo se aplica ao verdadeiro amor bondade, compaixão e assistência, que são todos opostos à cobiça.

Quando não temos dúvida e estamos absolutamente seguros daquilo que estamos fazendo – e esses momentos existem – esse também é um momento no qual estamos imaculados. A ausência de preocupações e inquietações também contribui para a nossa liberdade. Não ter o desejo de ir a algum lugar ou de fazer algo; não se preocupar com o que foi feito ou deixou de ser feito no passado, o que de qualquer jeito é absurdo quando chegamos à conclusão que ninguém se importa depois de passado um ano ou até mesmo um mês, e muito menos nós.

Todos experimentamos momentos sem dukkha. Quando esses momentos surgem, nós estamos “puros,” sem quaisquer máculas, sem sofrimento e sem medo. Nessas ocasiões nos sentimos tranqüilos e seguros, algo difícil de ser encontrado no mundo. Existem tantos perigos que ameaçam o nosso desejo de sobrevivência e eles estão conosco todo o tempo. Mas quando o coração e a mente estão totalmente ocupados com os estados purificados, não existe a possibilidade do medo surgir.

No nosso caminho para o “imortal,” necessitamos regenerar esses momentos de libertação e fazer com que eles surjam repetidamente. Podemos nos deliciar com esses estados mentais, desfrutando do conhecimento de que eles são factíveis. É uma tendência natural ressuscitar os nossos momentos de libertação repetidamente, para que permaneçamos no caminho para a libertação.

A concentração na meditação traz consigo uma calma e felicidade que provam com absoluta certeza que elas não possuem nenhuma relação com condições externas. Elas são estritamente fatores da mente, que são o nosso portal para a libertação. Não poderemos cultivá-los com êxito se eles forem negligenciados durante aquelas horas em que não estamos meditando. Precisamos guardar e proteger a mente dos pensamentos inábeis todo o tempo.

Quando experimentamos momentos mentais libertos, não devemos pensar que eles vieram do exterior. Da mesma forma como não podemos por a culpa em alguma provocação externa para aquilo de errado que ocorre na nossa mente, não podemos elogiar quando ocorre o contrário. As ocorrências externas são muito pouco confiáveis e fora do nosso controle. Depender de algo tão pouco confiável é uma tolice. A nossa prática se resume em gerar os estados imaculados na nossa mente, o que abre espaço para a meditação bem sucedida e é o caminho para a libertação. Quando a mente está isenta de contaminações, límpida e tranqüila, sem as convulsões do pensamento discursivo, simplesmente atenta, a felicidade e a paz surgem. Esses momentos, embora breves, são como a luz no final de um túnel que parece escuro e sufocante. Parece não ter fim e devido à falta de luz não se pode ver onde termina. Se cultivarmos e valorizarmos esses momentos únicos, então haverá luz e poderemos ver que o túnel tem um fim. E devido a isso, a felicidade é gerada no coração, o que é um importante auxiliar na prática.

O Buda ensinou um caminho equilibrado, isto é, ver a realidade como ela é, compreender que não há como escapar de dukkha, mas tendo o contrapeso da felicidade de saber que há uma saída. Se estivermos demasiadamente imbuídos de tristeza e nos sentirmos sobrecarregados por isso, acreditando que apenas isso é o caminho, então as nossas ações e reações terão que estar baseadas no nosso sofrimento. Sentir-se oprimido por dukkha não produz uma meditação bem sucedida nem uma vida harmoniosa. Se tentarmos negar dukkha e suprimí-lo, não estaremos enfrentando a realidade. Mas se virmos dukkha como uma característica universal, sabendo que podemos fazer algo para abandoná-lo, então estaremos em equilíbrio. Necessitamos de equilíbrio para uma prática bem sucedida.

XII. Caminho e Fruto

Ter ambição parece ser um fenômeno natural na constituição humana. Algumas pessoas querem ser ricas, poderosas ou famosas. Algumas querem ser muito versadas, com muitos diplomas. Outras querem apenas encontrar um pequeno nicho para si mesmas de onde possam olhar pela janela e ver a mesma paisagem todos os dias. Algumas querem encontrar um companheiro(a) perfeito(a) ou tão perfeito(a) quanto possível.

Mesmo quando não estamos vivendo no mundo, mas num monastério, temos ambições: tornarmo-nos excelentes meditadores, estarmos perfeitamente em paz, que esse estilo de vida produza resultados. Sempre há algo pelo qual esperar. Porque isso? Porque isso está no futuro, nunca no presente.

Ao invés de dar atenção ao presente, estamos esperançosos por algo melhor que possa vir, talvez amanhã. Então, quando surge o amanhã, ele se converte novamente no dia seguinte, porque ainda não foi perfeito o suficiente. Se mudássemos essa rotina no nosso hábito de pensar e ao invés disso nos tornássemos atentos àquilo que está ocorrendo, então poderíamos encontrar algo que nos satisfizesse. Mas como estamos buscando algo que ainda não existe, mais perfeito, mais maravilhoso, mais recompensador, então não iremos encontrar absolutamente nada, porque estamos buscando algo que não está presente.

O Buda descreveu dois tipos de pessoas, a comum, (puthujjana), e a nobre, (ariya). Obviamente, tornar-se uma pessoa nobre é uma ambição que vale a pena, mas se continuarmos buscando isso em algum momento no futuro, isso nos irá escapar. A diferença entre uma pessoa nobre e uma pessoa comum é que a primeira experimentou na consciência o “caminho supramundano e o seu fruto”,(magga-phala). O momento do primeiro caminho supramundano é denominado “entrar na correnteza”, (sotapatti), e a pessoa que o experimenta é chamada “aquela que entrou na correnteza”, (sotapanna).

Se colocarmos isso na nossa mente como um objetivo para o futuro, isso não irá se concretizar, porque não estaremos usando toda a nossa energia e força para reconhecer cada momento. Apenas no reconhecimento de cada momento, poderá ocorrer o momento do caminho supramundano.

O fator que distingue uma pessoa comum de uma pessoa nobre é a eliminação dos três primeiros grilhões que nos aprisionam ao ciclo de existências. Esses três, que obstruem a pessoa comum são: a idéia incorreta em relação ao eu, a dúvida e o apego a preceitos e rituais, (sakkayaditthi, vicikiccha e silabbatta-paramasa). Todos aqueles que não entraram na correnteza estão aprisionados por essas três crenças incorretas e por ações que os afastam da libertação e que os conduzem ao cativeiro.

Analisemos primeiro a dúvida. É aquele pensamento irritante no fundo da mente: “Deve haver um modo mais fácil” ou “Tenho certeza que poderei encontrar a felicidade em algum lugar neste mundo enorme.” Enquanto houver dúvida de que o caminho da libertação conduz para fora do mundo, e a crença de que a satisfação pode ser encontrada dentro do próprio mundo, não existe possibilidade da realização nobre, porque a pessoa estará olhando na direção errada. Dentro deste mundo com suas pessoas e coisas, animais e posses, paisagens e contatos sensuais, não há nada que possa ser encontrado além daquilo que já conhecemos. Se houvesse mais, porque isso não seria facilmente discernível, porque não o encontramos? Deveria ser muito fácil de ser visto. O que então estamos procurando?

É óbvio que estamos procurando a felicidade e a paz, da mesma forma como todas as demais pessoas. A dúvida, essa alarmista, diz: “Tenho certeza que se eu lidar com isso com um pouco mais de destreza do que da última vez, serei feliz. Tem algumas coisas que ainda não tentei.” Talvez ainda não tenhamos pilotado nosso próprio avião ou vivido numa caverna no Himalaia, ou velejado ao redor do mundo, ou escrito aquele romance best seller. Todas essas são coisas maravilhosas para serem feitas no mundo, exceto que são um desperdício de tempo e energia.

A dúvida se manifesta quando não estamos muito seguros em relação a qual deve ser o nosso próximo passo. “Para onde irei, o que farei?” Ainda não descobrimos o rumo. A dúvida é um grilhão na mente enquanto a luminosidade que provém do momento do caminho supramudano ainda estiver ausente. A consciência que surge nesse momento remove toda a dúvida, porque experimentamos a evidência por nós mesmos. Quando mordemos uma manga, sabemos qual é o seu sabor.

A idéia incorreta em relação ao eu é o grilhão mais prejudicial que acossa a pessoa comum. Ela contém a noção “isso sou eu” que está profundamente arraigada. Talvez até nem seja “meu” corpo, mas há “alguém” que está meditando. Esse “alguém” deseja se iluminar, deseja entrar na correnteza, deseja ser feliz. Essa idéia incorreta relacionada a um eu é a causa de todos os problemas que possam quiçá surgir.

Enquanto houver “alguém” ali, essa pessoa estará sujeita a ter problemas. Quando não há ninguém ali, quem é que poderia enfrentar dificuldades? A idéia incorreta em relação a um eu é a raiz que gera toda a dor, angústia e lamentação subsequentes. Com isso também surgem o medo e as preocupações: “Estarei bem, feliz, em paz, encontrarei aquilo que estou procurando, obterei aquilo que quero, terei saúde, riqueza e sabedoria?” Esses medos e preocupações são justificados com base no próprio passado. Nós nem sempre fomos saudáveis, ricos e sábios, nem obtivemos aquilo que queríamos, nem nos sentimos maravilhosos. Então há uma boa razão para estarmos preocupados e temerosos enquanto prevalecer a idéia incorreta relacionada a um eu.

Preceitos e rituais em si mesmos não são prejudiciais, apenas acreditar que eles sejam parte do caminho para Nibbana é danoso. Eles não necessitam sequer ser religiosos, embora pensemos neles dessa forma. Tal como oferecer flores e incenso num santuário, prostrando-se ou celebrando certos festivais e acreditando que isso irá acumular mérito suficiente para conduzir ao mundo dos Devas. É a devoção, respeito e gratidão com relação à Jóia Tríplice que conta. Mas esse tipo de crença não está confinado apenas às atividades religiosas. Todas as pessoas vivem com preceitos e rituais, muito embora possamos não ter consciência deles. Nas relações humanas existem certas formas definidas sobre como agir em relação aos pais, aos filhos, aos companheiros. Como nos devemos portar no trabalho, em relação a amigos e estranhos, como devemos ser reconhecidos pelos outros, tudo está conectado a idéias preconcebidas com respeito ao que é correto e adequado numa certa cultura e tradição. Nada disso possui algum tipo de verdade intrínseca, tudo é fabricado pela mente. Quanto mais idéias tivermos, menos capazes seremos de ver a realidade. Quanto mais acreditarmos nelas mais difícil será abandoná-las. Quando imaginamos ser um certo tipo de pessoa, comportamo-nos de acordo com essa idéia em todas as situações. Não só pela maneira como colocamos as flores num santuário, mas também pela maneira como cumprimentamos as pessoas, e se o fazemos de acordo com um ritual estereotipado e não ditado por um coração e mente abertos.

Essas obstruções se enfraquecem quando experimentamos o momento do primeiro caminho supramundano e o seu fruto. Ocorrem mudanças significativas na pessoa, que não são – é claro – visíveis externamente. Seria gracioso possuir uma auréola e uma aparência bem aventurada. Mas a mudança interior, em primeiro lugar, é que a experiência não deixa nenhuma dúvida quanto àquilo que deve ser feito nesta vida. O evento é totalmente distinto de qualquer coisa que tenha sido experimentada antes, tanto que a vida da pessoa até aquele momento passa a não ter mais importância. Nada que tenha importância fundamental será encontrado no passado. A única coisa importante é dar seguimento à prática para que aquela experiência mínima do primeiro momento do caminho possa ser fortificada, revivida e estabelecida com firmeza dentro da própria pessoa.

O momento do caminho supramundano e o seu fruto se repete para aquele que retorna uma vez, (sakadagami), para aquele que não retorna, (anagami), e para o Iluminado, (Arahant). Eles, não só são cada vez mais profundos, como também podem ser alongados. Poderíamos compará-los aos exames numa carreira universitária. Se alguém estiver estudando durante quatro anos numa universidade para obter um certo diploma, ele terá que ser aprovado nos exames ao fim de cada ano. Terá que responder a questões relativas ao conhecimento que foi absorvido a cada exame. E as questões se tornarão mais profundas, mais complexas e difíceis a cada exame. Apesar de estarem relacionadas sempre com o mesmo assunto, elas irão a cada vez requerer maior profundidade de entendimento. Até que ele finalmente consiga o diploma e não tenha mais que retornar para a universidade. Ocorre o mesmo com o desenvolvimento espiritual. Cada momento do caminho está baseado no anterior e diz respeito ao mesmo assunto, no entanto o seu alcance será mais profundo e maior. Até que se obtenha a aprovação no exame final e não seja mais necessário retornar.

O momento do caminho supramundano não possui nenhum tipo de pensamento ou sensação. Não é comparável às absorções meditativas, (jhanas), embora esteja baseado nelas, pois só a mente concentrada é capaz de penetrar o momento do caminho, ele não possui as mesmas qualidades. As absorções meditativas possuem – nos seus estágios iniciais – os ingredientes de êxtase, felicidade e paz. Mais tarde, a mente experimenta a expansão, o nada e uma mudança de percepção. O momento do caminho não possui nenhum desses estados mentais.

Ele possui uma qualidade de não-ser. É um alívio tão grande, e muda a visão do mundo tão completamente, que é totalmente compreensível que o Buda tenha feito tamanha distinção entre uma pessoa comum e uma pessoa Nobre. Enquanto as absorções meditativas proporcionam uma sensação de unificação e de unidade, o momento do caminho nem isso contém. O momento do fruto, subseqüente ao momento do caminho, é a compreensão da experiência e resulta numa reviravolta na percepção da existência.

Esse novo entendimento reconhece cada pensamento, cada sensação, como insatisfatório, (dukkha). O pensamento mais elevado, a sensação mais sublime, ainda possui essa qualidade. Apenas quando não há nada, não há sofrimento. Não há nada interno ou externo que contenha a qualidade da satisfação total. Devido a essa visão interior, a paixão por querer alguma coisa é descartada. Tudo foi visto como realmente é, e nada pode proporcionar a felicidade que surge através da prática do caminho e dos seus resultados.

Nibbana não pode ser descrito corretamente como êxtase, porque o êxtase possui uma conotação de regozijo. Empregamos a palavra “êxtase” para as absorções meditativas, nas quais se inclui um senso de excitação. Nibbana não contém êxtase porque tudo aquilo que surge é visto como insatisfatório. “O êxtase de Nibbana” pode dar a impressão que a perfeita felicidade será encontrada, mas o oposto é verdadeiro. O que se descobre é que não há nada e assim não há mais infelicidade, apenas paz.

Procurar pelo momento do caminho supramundano e pelo seu fruto não fará com que estes ocorram, porque somente a atenção momento a momento é capaz de realizar essa tarefa. Essa atenção irá por fim culminar na verdadeira concentração, onde o pensamento é abandonado e a absorção é total. Podemos então abandonar o objeto da meditação. Não precisamos empurrá-lo para o lado, ele irá desaparecer espontaneamente e a absorção mental ocorrerá. Se é necessário ter uma ambição na vida, esta é a única que vale a pena. Todas as demais não trarão satisfação.

Não é necessário forçar a si mesmo para abandonar a dúvida. O que mais poderá ser colocado em dúvida quando a verdade foi experimentada? Se alguém golpeia a si mesmo com um martelo, irá sentir dor e não haverá dúvida quanto a isso. A pessoa saberá através da própria experiência.

Os preceitos e rituais têm um fim interessante porque a pessoa que experimentou o momento do caminho, não irá se permitir desempenhar um papel sob nenhuma hipótese . Todos os papéis são ingredientes do irreal. A pessoa poderá dar seguimento a rituais religiosos, porque estes contêm aspectos de respeito, gratidão e devoção. Mas não haverá mais cerimônias no modo de relacionar-se com outras pessoas, ou situações, ou na maneira de inventar histórias sobre si mesmo, porque as reações serão com um coração aberto, espontâneo.

Abandonar a idéia incorreta em relação ao eu, é com certeza, a mudança mais profunda, que causa todas as demais mudanças. Para aquele que entrou na correnteza a idéia incorreta em relação ao eu nunca mais surgirá intelectualmente, mas poderá ocorrer em termos de sensação, porque o momento do caminho foi tão efêmero que ainda não produziu o impacto total. Se tivesse produzido, teria resultado na Iluminação. Isso é possível e está mencionado nos discursos do Buda que isso ocorreu durante o período em que ele estava vivo, todos os quatro estágios de santidade realizados ao ouvir um discurso do Dhamma.

O fruto do momento do primeiro caminho supramundano tem que ser revivido, é necessário ressuscitá-lo repetidamente, até que o momento do segundo caminho supramundano possa surgir. É como repetir aquilo que se sabe, sem esquecer, para que se possa obter benefício disso.

É muito benéfico recordarmo-nos em todos os momentos em que estivermos despertos que o corpo, sensação, percepção, formações mentais e a consciência são todos impermanentes e não possuem uma essência, mudando de momento a momento. Quer se tenha obtido uma visão direta do não-eu, (anatta), ou apenas o entendimento disso, de qualquer modo deve-se trazer isso de volta para a mente e revivê-lo tão freqüentemente quanto possível. Continuando a fazer isso, os problemas comuns irão surgir cada vez com menos freqüência. Se nos mantivermos atentos à impermanência de tudo aquilo que existe, as nossas dificuldades irão parecer muito menos importantes e a idéia de um eu irá mudar de modo sutil.

A idéia que temos de nós mesmos é o nosso pior inimigo. Todos construímos um personagem, uma máscara que usamos, sendo que não queremos ver o que está por detrás dela. Tampouco permitimos que outrem possa ver. Depois de experimentar o momento do caminho, isso não será mais possível. Ao invés disso, a máscara, o medo e a rejeição vêm à tona. O melhor antídoto é relembrar repetidamente de que na verdade ali não há ninguém, apenas fenômenos, nada mais. Muito embora a visão interior possa não ser concreta o suficiente para dar substância a tal afirmação, essa declaração ajuda a enfraquecer o agarramento e o apego.

O rumo da prática com certeza está direcionado para Entrar na Correnteza. No entanto, não existe nada para ser obtido, e tudo para ser abandonado. A não ser que isso seja feito, o momento do caminho supramundano não poderá ocorrer e continuaremos a viver da mesma forma como sempre vivemos. Acossados por dukkha, obstruídos por dukkha, sujeitos ao elogio e à crítica, ganho e perda, fama e má reputação, alegria e tristeza. Os problemas usuais – todos causados pelo “eu” – irão surgir repetidamente. A mudança verdadeira ocorre quando existe uma alteração decisiva na forma como nos vemos, de outro modo as dificuldades permanecem porque a mesma pessoa as estará gerando.

Estar plenamente atento dentro e fora da meditação é a prática que irá produzir resultados. Significa fazer uma coisa de cada vez, com atenção para a mente e para o corpo. Ao ouvir o Dhamma, apenas ouça. Ao sentar em meditação, apenas dê atenção ao objeto da meditação. Ao plantar uma árvore, apenas plante. Sem extravagâncias, sem julgamentos. Isso habitua a mente a estar presente em cada momento. Só assim poderá ocorrer o momento do caminho supramundano. Isso não se encontra num futuro distante, é possível, aqui e agora. Não há motivo porque uma pessoa inteligente, saudável, comprometida, não seja capaz de realizar isso com paciência e perseverança.

Ouvimos que o desencantamento e o desapego são passos no caminho para a liberdade. Estes não terão significado e impacto a não ser que exista a visão de uma realidade totalmente diferente, uma que não contenha a proliferação do mundo. Quando alguém senta para meditar e começa a pensar, essa é a tentação da proliferação e diversificação, (papañca). O elemento Nibbana é único e não múltiplo. Poderíamos dizer que ele está vazio de tudo aquilo que conhecemos. Até que isso seja visto, o mundo continuará chamando, mas nós não precisamos acreditar em tudo. É uma tarefa difícil. Por isso é necessário que nos recordemos com freqüência, de outro modo seremos aprisionados pela tentação. Não deveríamos nos surpreender quando não encontramos a felicidade; a proliferação e a diversificação não criam a felicidade, apenas a distração.

Com certeza podemos experimentar o prazer através dos sentidos. Se alguém possuir bom karma haverá muitas ocasiões. Boa comida, belas paisagens, pessoas agradáveis, boa música, livros interessantes, uma casa confortável, sem muitos desconfortos físicos. Mas isso trará satisfação? Como não a tivemos no passado, porque deveríamos tê-la no futuro? Os caminhos supramundanos e os seus frutos trazem a satisfação porque estão vazios de fenômenos. O vazio não muda nem se torna desagradável e não lhe falta a paz, já que não há nada que possa perturbá-lo.

Quando as pessoas ouvem ou lêem sobre Nibbana, elas podem dizer: “Como posso não querer nada?” Quando a pessoa vir que tudo aquilo que pode ser desejado tem o propósito de preencher o vazio e a insatisfação interior, então terá chegado o momento de não querer nada. Isso vai além de “não querer”, porque a pessoa agora aceita a realidade de que não há nada que valha a pena ter. Não querer nada possibilitará a experiência de que na verdade não há nada – apenas a paz e a tranqüilidade.

Ayya Khema
fonte: www.acessoaoinsight.net


7 de setembro de 2012

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