Pergunta: Nasci com um certo temperamento, um certo padrão psicológico e físico, qualquer que seja a sua razão de ser. Esse padrão se torna o principal fator da minha vida. Domina-me de maneira absoluta. Minha liberdade, dentro do padrão, é muito limitada, visto que a maioria das minhas reações e impulsos são rigidamente predeterminados. Posso quebrar a tirania desse fator genético?
Krishnamurti: Expressando a mesma coisa, de outra maneira: Estou preso num padrão social, hereditário, ambiental, ideológico, quer seja o padrão dos meus pais, quer seja o da sociedade que me rodeia. Estou tolhido por um padrão, e a questão se cinge em saber como o poderei quebrar. Sou o resultado do meu pai e da minha mãe, biologicamente, fisicamente. Sou o resultado das crenças, dos hábitos, dos temores dos meus pais, os quais criaram a sociedade que me circunda. Meus pais, por sua vez, foram o resultado dos seus pais, com o seu ambiente social, físico, psicológico, e assim, retrospectivamente, infinitamente, sem começo. Toda pessoa está presa dentro de um padrão de existência, e eu sou o resultado de todo aquele passado – não apenas o meu passado próprio, mas todo passado da humanidade. Sou, afinal de contas, o filho de meu pai. Sou o resultado do passado, modificado, em conjunção com o presente. Não estamos aventando a questão da reencarnação, que é uma mera teoria. Estamos apenas examinando o que realmente é. Minha existência é resultado do meu passado, sendo o meu passado o resultado da existência de meu pai. Sou produto do tempo, sou o passado atravessando o presente para se tornar o futuro. Sou o resultado de ontem, que é o hoje a tornar-se amanhã.
Ora, posso sair desse processo do tempo, isto é, posso quebrar o padrão que meu pai e eu mesmo criamos? Não sou diferente de meu pai; sou meu pai, modificado. Isto é, exatamente, o que é. Mas, se começo a traduzir o que é, se admito, por exemplo, a idéia de que sou a alma, uma entidade espiritual, penetro então num domínio de todo diferente. Não é isso que nos interessa, por ora – trataremos desta questão quando entrarmos no problema relativo à alma, à continuidade, à reencarnação. O problema, por enquanto, é: Posso eu, que sou condicionado – não importa se pela esquerda ou pela direita – posso eu sair desse condicionamento?
Que é que vos condiciona? Que é que limita o pensamento? Que é que cria o padrão em que estais presos? Se cesso de pensar, não existe padrão algum. Isto é, eu sou o pensador, meus pensamentos são o resultado de ontem; eu reajo a todo estímulo novo de acordo com o padrão de ontem ou do segundo que acaba de passar; e posso eu, cujo processo de pensamento é resultado de ontem, deixar de pensar em termos de ontem? Estou apenas explicando o problema de modo diferente, e vós mesmos encontrareis a sua solução num minuto. Meu pensamento está condicionado, porque qualquer reação procedente do estado de condicionado cria mais condicionamento; toda ação resultante do estado de condicionamento é ação condicionada, que, por conseguinte, dá continuidade ao estado condicionado. Logo, para dele sairmos, precisamos estar livre do processo de pensar – mas não se deve entender que eu esteja sugerindo isso como um meio de fuga. A maioria das pessoas procura fugir porque a vida lhes é muito premente, muito forte, muito exigente. Não estou propondo uma dessas fugas; estou apenas a pedir-vos para que olheis para a verdade contida no problema. Podeis ficar livres do processo de pensar? Pode ocorrer uma revolução completa no pensar – não de acordo com o antigo padrão, o que seria uma continuação do velho, com valores modificados – mas uma transformação completa, uma quebra total do que é? Visto que sou o produto de ontem, a liberdade, evidentemente, não está no mesmo nível em que estou, o qual é uma mera continuação do ontem. Assim sendo, só poderei sair do padrão quando houver a cessação do pensar.
Estamos apenas encarando o problema, e não buscando uma solução. Porque a solução está contida no problema, e não fora dele. Se compreenderdes o problema, encontrareis a solução nele próprio; mas quando buscais uma solução e a não encontrais, ficais perturbado. Estais à espera de que eu vos diga como se sai do padrão. Não vou dizer-vos como se sai dele; nenhuma significação teria o dizê-lo, porque em tal caso deixaríeis de acompanhar o problema. Queríeis que eu vos dissesse o que deveríeis fazer, e por isso estais agora muito perturbado. Não vos digo o que deveis fazer, uma vez que basta compreender o problema para que ele desapareça. Quando vedes uma serpente e sabeis que ela é venenosa, não existe problema algum, existe? Sabeis como proceder – não tocá-la, afastar-se, ou fazer qualquer outra coisa. Identicamente, é necessário que compreendais de maneira completa este problema; mas não o estais fazendo. Eu o estou fazendo no vosso lugar, e vós estais meramente a escutar-me. Precisamos compreender o problema, e não perguntar como resolvê-lo. Quando compreendeis o problema, ele mesmo vos revela a solução. Sois como um colegial em exame. Ele não lê o problema cuidadosamente: quer a solução; e por isso falha. Mas, se lê o problema com todo o vagar, com todo o cuidado, considerando-o sob todos os aspectos, encontrará a solução, ou, antes, a solução se lhe revelará.
De modo idêntico, vós estais encarando este problema com o desejo de uma solução. Julgo que não percebeis a beleza nele contida. Provavelmente estais cansados, senhores.
Voz do auditório: Não.
Krishnamurti: Sim, senhores, estais cansados. Eu vos direi porque. Tudo isso é provavelmente muito novo para vós, nem o pode deixar de ser, pois é uma maneira de toda nova de considerar; estais um pouco perturbados, e quando estamos confusos ou perturbados, a nossa mente divaga. Posso continuar; é minha tarefa; mas eu fiz isso, não falo apenas. Enquanto, no vosso caso, senhores, se me permitis dizê-lo, vós não estais estudando o problema. Eu o formulei por maneiras diferentes, mas vós não quereis seguí-lo. Estou simplesmente apontando o que é, – o problema. Mas não estais interessados em estudar o que é. Estais esperando pelo resultado, ao passo que eu não tenho interesse pelo resultado.
Eu quero a coisa como ela é – por isso encontrei a solução.
Permiti-me, pois, tornar a pedir-vos que estudeis o problema, e que não procureis uma solução. Vede, por favor, a importância que isso tem: procurar uma resposta, uma solução, não significa compreender o problema; e se não compreendeis o problema, não haverá solução para ele. O problema está aqui, e vós procurais a solução ali, o que significa que desejais uma solução conveniente, lisonjeira. Mas se encarardes o problema com todo o vosso cuidado, aplicando-lhe toda a vossa inteligência, percebereis, então, a sua beleza, e o resultado é maravilhoso.
O problema, pois, consiste no seguinte: meu pensamento está condicionado, fixado num padrão; e a qualquer estímulo, que é sempre novo, o meu pensamento só pode reagir de acordo com o seu condicionamento, transformando o novo no velho, modificado. Desta maneira, o meu pensamento nunca pode ser livre. Meu pensamento, que é produto do ontem, só é capaz de reagir nas mesmas condições de ontem, e quando ele indaga “Como posso passar além?” está fazendo uma pergunta errônea. Porque, quando o pensamento tenta superar o seu próprio condicionamento, dá continuidade a si mesmo, sob forma modificada. Por conseqüência, há falsidade nessa pergunta. Só há liberdade quando não existe condicionamento; mas para que haja liberdade, deve o pensamento ficar cônscio da sua condição, e não tentar tornar-se diferente do que é. Se o pensamento diz: “Preciso libertar-me do meu condicionamento”, nunca o conseguirá; pois, o que quer que faça é sempre a sua própria rede, prolongada ou modificada. O pensamento só pode fazer uma coisa para ser livre: cessar. Sem dúvida, sempre que o pensamento está ativo, está condicionado, é continuidade, modificada por uma reação condicionada. Por esse caminho não encontraremos saída alguma do nosso condicionamento. Por conseguinte, só existe um caminho, o qual é vertical, o qual é direto: cessar o pensamento.
Mas, pode o pensamento cessar? Que é pensar? Que entendemos por pensar? Entendemos por pensar a reação da memória. Estou-me expressando por maneira muito simples. Não desejo complicar o problema, já de si mesmo muito complexo. Pensar é reação da memória; e que é memória? Memória é o resíduo da experiência. Isto é, quando se nos apresenta um estímulo, o pensamento de ontem, que é memória, reage a esse estímulo, e por conseguinte esse estímulo não é compreendido perfeitamente, porém interpretado através da cortina de ontem. Assim, pois, aquilo que não é compreendido deixa um vestígio, a que chamamos memória. Já não notastes que, quando compreendestes alguma coisa, quando esgotastes uma conversa, quando ela ficou terminada, não resta vestígio algum? É só o ato incompleto, quer verbal, quer físico, que deixa vestígio. A reação desse vestígio, que é memória, chama-se pensar. Ora, pode haver um estado no qual não existe o ontem, isto é, pode haver um estado em que não haja tempo, em que não haja pensamento que seja o produto do ontem? O pensamento condicionado, que procura modificar ou transformar a si próprio, apenas continua o estado condicionado. Isso é bastante óbvio. Pensar é reação da memória, o que também é bastante óbvio. E a memória é o produto da imperfeita compreensão da experiência, do estímulo. A imperfeita compreensão da existência é a causa da memória. Quando fazeis uma coisa integralmente, com todo o vosso ser, não fica resíduo algum da memória; mas quando o resíduo produz a reação, a essa reação chamamos pensar. Esse pensar é condicionado, e esse condicionamento só pode terminar quando o ato é completo. Enfrentais, então, todas as coisas de maneira nova.
Como enfrentar as coisas de maneira nova? Como enfrentar a vida, a existência por maneira nova, independente do tempo? Esta é uma nova questão, não é verdade? É a questão que surge da presente pergunta. Ao apresenta-vos esta nova questão, qual é a vossa reação? Se vossa reação é também nova, estais então passivamente cônscio, alertado, vigilante. Esse estado é atemporal. Nesse estado, em que enfrentais todas as coisas com passiva vigilância, percebimento, não existe o tempo; dá-se uma experiência direta, o estímulo é compreendido diretamente; por conseguinte, há liberdade de pensar. E essa liberdade é eterna; ela existe agora, e não amanhã.
Krishnamurti – 18 de janeiro de 1948
Do livro: Da Insatisfação à Felicidade
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