Jardim dos Mestres

Como conhecer a si mesmo?

Qual é a natureza do pensamento, e qual cessa quando há completa atenção e brota quando não há atenção? Você precisa compreender o que é estar alerta, de outro modo não será possível compreender completamente o significado da atenção.

Existe uma idéia da percepção alerta, ou você está alerta? Existe uma diferença entre a idéia de estar alerta e o estar alerta. Estar “alerta” implica ser sensível, perceber vivamente as coisas ao redor de você, a natureza, as pessoas, as cores, as arvores, o meio que o circunda, a estrutura social, econômica, as coisas em sua totalidade; implica conhecer, observar, estar sensivelmente atento a tudo quanto acontece no exterior; e também ao que acontece psicologicamente em seu interior.

Se não estamos internamente atentos, nos tornamos mais e mais neuróticos. Porém, se você começa a se dar conta, o quanto mais possível, do que exatamente está ocorrendo no mundo, e a partir daí se movimenta internamente, então existe o equilíbrio. Existe então uma possibilidade de não se enganar a si mesmo. Você começa pela atenção ao que acontece exteriormente, e depois se move interiormente – um movimento constante, como o fluxo e refluxo da maré – e, desse modo não existe a possibilidade de engano; desse modo existe discernimento.

Como se conhecer s i mesmo? Você mesmo é uma estrutura muito complexa, um movimento muito complexo; como se conhecer a si mesmo sem o auto-engano? Só podemos nos conhecer através da nossa relação com os outros. Nessa relação com os demais, pode ser que você se distancie deles porque não deseja ser machucado, e na relação você também pode descobrir que é muito ciumento, dependente, que está apegado e que na realidade é muito insensível. Por conseguinte, a relação funciona como um espelho no qual você se conhece a si mesmo. Igualmente ocorre externamente; o externo é um reflexo de você mesmo, porque a sociedade, os governos, todas estas coisas criadas pelos seres humanos, são fundamentalmente o mesmo que é você.

Para descobrir o que é a percepção alerta, devemos investigar a questão da ordem e da desordem. Você vê que exteriormente existe muitíssima desordem, confusão e insegurança. O que tem produzido esta insegurança, esta desordem? Quem é o responsável? Somos nós? Tem que estar muito claro se somos nós os responsáveis pela desordem externa; ou esta é alguma desordem divina pela qual haverá de surgir uma divina ordem? Portanto, se você se sente responsável pela desordem externa, essa desordem não é por acaso uma expressão da própria desordem interna?

Você observa que a desordem externa é criada por nossa desordem interna. Ainda que os seres humanos não tenham ordem em sí mesmos, sempre haverá desordem. Os governos podem procurar controlar a desordem externa; a expressão extrema é a forma totalitarista do marxismo – que diz saber o que é a ordem; e como você o sabe, eles lhe dirão o que você é e o reprimirá, o confinará em campos de concentração e em hospitais psiquiátricos, etc.

O mundo se encontra em desordem porque nós estamos em desordem, cada um de nós. Você se dá conta da sua desordem, ou tem somente um conceito da desordem? Percebemos claramente que estamos em desordem, ou essa é meramente uma idéia que nos foi sugerida e que a aceitamos? A aceitação de uma idéia é uma distração, uma distração “do que é”. A distração significa afastar-se “do que é” – e nós vivemos muito mais de idéias e nos afastamos dos fatos. Você está aceitando um conceito de desordem, ou percebe que a desordem encontra-se em você mesmo? Você compreende a diferença que existe entre ambos os fatos? E essa é uma percepção alerta per si, por si mesma?

O que entendemos por desordem? Existe contradição; pensamos em uma coisa e fazemos outra. Encontra-se a contradição dos desejos opostos, dos opostos requerimentos internos, dos movimentos que dentro de você se opõem entre si – a dualidade. Como surge esta dualidade? Não é porque somos incapazes de ver “o que é”? Você gostaria muito mais de escapar “do que é” para “o que deveria ser”, esperando de algum modo, por algum milagre, por um esforço da vontade, transformar “o que é” no “que deveria ser”. Ou seja: você se encontra com raiva e “não deveria” estar com raiva. Se você soubesse o que fazer com a raiva, como se entender com a raiva e seguir em frente, não haveria necessidade do “que deveria ser” – que é “não estar com raiva”. Se você pode compreender, se sabe o que fazer com “o que é”, não fugirá para “o que deveria ser”. Devido ao fato de não sabermos o que fazer com “o que é”, esperamos que inventando um ideal, de algum modo poderemos por meio do ideal modificar “o que é”.  Ou, o motivo de que não podemos e não sabemos o que fazer, o cérebro se condiciona a viver sempre no futuro – “no que você espera ser”.  Vivemos essencialmente no passado, porém, esperamos alterar o presente vivendo para um ideal futuro. Se você soubesse o que fazer com “o que é”, então, o futuro não importaria. Não se trata de aceitar “o que é”, senão, de permanecer com “o que é”.

Só podemos compreender algo se reparamos “no que é” e não tratamos de fugir disso, se não tratamos de converte-lo em outra coisa. É possível permanecer com “o que é”, observa-lo, vê-lo – e nada mais? Dou-me conta de que sou invejoso, porém isso não exerce ação alguma. A inveja é um sentimento, e eu tenho reparado nesse sentimento chamado inveja. A palavra não é a coisa; porém, posso estar confundindo a palavra com a coisa. Talvez me encontre envolvido nas palavras e não esteja com o fato – o fato de que sou invejoso. Isto é muito complexo; quem sabe seja a palavra o que incita esse sentimento. Pode a mente estar livre da palavra e reparar? A palavra tem se tornado tão importante me nossa vida! Sou por acaso o escravo das palavras – sabendo que a palavra não é a coisa? É que a palavra se tornou tão importante que para mim o fato não é real, não é factual? Eu preferiria reparar a fotografia de uma montanha a ir olhar a montanha diretamente; para isto, tenho que percorrer uma grande distância, tenho que escalar a montanha, contempla-la, senti-la. Olhar um quadro que representa uma montanha, é um olhar um símbolo; isso não é uma realidade. Estou preso em palavras, que são símbolos e, em conseqüência, me afasto da realidade? É a palavra o que cria o sentimento de inveja? – ou a inveja existe sem a palavra?

Isto requer uma tremenda disciplina, não a repressão. O mesmo ato de seguir a investigação, tem a sua própria disciplina. Portanto, tenho que averiguar muito cuidadosamente se a palavra tem criado o sentimento ou se o sentimento existe sem a palavra. A palavra é “inveja”, eu a nomeei antes quando experimentei esse sentimento, em conseqüência, estou registrando o sentimento presente conforme um acontecimento da mesma índole ocorrido no passado. De modo que o presente é absorvido pelo passado.

Por conseguinte, me dou conta do que estou fazendo. Dou-me conta de que a palavra se tornou extraordinariamente importante para mim. Existe, então, liberdade com respeito as palavras, cobiça, inveja, ou as palavras nacionalidade, comunista, socialista e assim sucessivamente – estou livre da palavra? A palavra pertence ao passado.  O sentimento é o presente reconhecido pela palavra que procede do passado; assim, estou vivendo todo o tempo no passado. O passado é o eu. O passado é tempo; portanto, o tempo é o eu. O eu diz: “não devo ser rancoroso”, porque meu condicionamento diz: “não seja invejoso, não seja rancoroso”. O passado diz ao presente o que deve fazer. Portanto, existe uma contradição, porque fundamentalmente, muito profundamente, o passado está ditando os atos presentes. O eu, que é o passado com todas as suas recordações, seus condicionamentos, suas experiências – uma coisa produzida pelo pensamento –, o eu está ordenando o que deve ocorrer.

Posso, então, observar o fato da inveja, observa-la sem o passado? Pode haver uma observação da inveja sem nomeá-la, sem cair preso na palavra, havendo compreendido que a palavra pode criar o sentimento, então a palavra é o “eu” – que pertence ao passado e me diz: “Não seja invejoso”? É possível olhar “o que é”, olha-lo sem o eu, ou seja, sem o observador? Posso observar a inveja, o sentimento, e o modo em que este se realiza na ação, sem o observador, que é o passado?

“O que é” só pode ser observado quando não há “eu”. Vocês podem observar as cores e as formas que os rodeiam? Como os observam? Você observa por meio dos olhos. Observem sem mover os olhos; porque se você move os olhos, surge no cérebro toda a operação do pensar. E no momento em que o cérebro funciona, ocorre distorção. Observem algo sem mover os olhos e vejam como o cérebro se aquieta. Você observa então não só com os olhos, senão com toda sua atenção, com afeto. Então existe uma observação do fato – não a idéia senão o fato. Você aborda “o que é” fazendo-o com solicitude, com afeto; portanto, não ocorre juízo, não existe condenação; em conseqüência, você está livre dos opostos.

Krishnamurti – A Totalidade da Vida – The Wholeness of Life – 1977


27 de julho de 2014

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