Jardim dos Mestres

Proteção Através de Satipatthana Sutta

Certa vez o Buda contou aos bhikkhus a seguinte história (Sedaka Sutta – SN XLVII.19):

“Bhikkhus, certa vez no passado, um acrobata, tendo levantado um poste de bambu, se dirigiu ao seu ajudante, Medakathalika: ‘Venha, estimado Medakathalika, suba nos meus ombros e fique em pé sobre o poste de bambu.’ Tendo respondido, ‘Sim, mestre,’ o aprendiz Medakathalika subiu sobre os ombros dele e ficou em pé no poste de bambu. O acrobata então disse para o aprendiz Medakathalika: ‘Você agora me proteja, estimado Medakathalika, e eu o protegerei. Assim, guardando um ao outro, protegendo um ao outro, mostraremos nossa arte, receberemos nossa recompensa e com segurança desceremos do poste de bambu.’ Quando isso foi dito o aprendiz Medakathalika respondeu: ‘Esse não é o modo de fazer isso, mestre. Você se protege, mestre, e eu me protegerei. Assim, com cada um guardado e protegido, nós mostraremos a nossa arte, receberemos a nossa recompensa e com segurança desceremos do poste de bambu.’

“Esse é o método nesse caso,” o Abençoado disse. “É exatamente aquilo que o aprendiz Medakathalika disse para o seu mestre. ‘Eu me protegerei,’ bhikkhus: assim devem ser praticados os fundamentos da atenção plena. ‘Eu protegerei os outros,’ bhikkhus: assim devem ser praticados os fundamentos da atenção plena. Protegendo a si mesmo, bhikkhus, ele protege os outros; protegendo os outros, ele protege a si mesmo.

“E como é, bhikkhus, que protegendo a si mesmo, ele protege os outros? Através da perseverança, desenvolvimento e cultivo dos quatro fundamentos da atenção plena. É desse modo que protegendo a si mesmo, ele protege os outros.

“E como é, bhikkhus, que protegendo os outros, ele protege a si mesmo? Através da paciência, não fazendo o mal, através de uma mente com amor bondade e compaixão. É desse modo que protegendo os outros, ele protege a si mesmo.

Este sutta pertence a um grupo considerável de ensinamentos importantes e eminentemente práticos do Buda, que ainda se encontram escondidos como se fossem um tesouro enterrado, desconhecidos e não utilizados. Apesar disso, este texto possui uma importante mensagem para nós, e o fato de ele estar estampado com o selo real de satipatthana justifica uma atenção ainda mais especial.

Indivíduo e Sociedade

O sutta trata das nossas relações com os demais seres humanos, entre o indivíduo e a sociedade. Ele resume de forma sucinta a atitude Budista em relação aos problemas da ética individual e da sociedade, de egoísmo e altruísmo. A sua essência está contida em duas frases concisas:

“Protegendo a si mesmo, se protege os outros (Attanam rakkhanto param rakkhati.)

“Protegendo os outros, se protege a si mesmo.” (Param rakkhanto attanam rakkhati.)

Essas duas frases são complementares e não devem ser tomadas ou mencionadas em separado. Hoje em dia, quando o serviço social é tão enfatizado, as pessoas podem ser tentadas a dar sustentação às suas idéias mencionando apenas a segunda frase. Mas qualquer citação unilateral distorcerá o ponto de vista do Buda. Deve ser lembrado que na nossa estória o Buda expressamente aprova as palavras do aprendiz, que primeiro devemos vigiar com cuidado nossos próprios passos se quisermos proteger os outros do mal. Aquele que estiver afundado na lama, não será capaz de ajudar os outros a saírem dela. Nesse sentido, a nossa própria proteção forma a base indispensável para a proteção e ajuda dada aos outros. Mas a proteção de si mesmo não é uma proteção egoísta. É auto-controle, é o desenvolvimento ético e espiritual de si mesmo.

Existem algumas grandes verdades que são tão abrangentes e profundas que parecem ter um alcance que se expande com o próprio limite do indivíduo de compreendê-las e praticá-las. Tais verdades se aplicam a vários níveis de compreensão e são válidas em vários contextos das nossas vidas. Depois de alcançar o primeiro ou segundo nível, a pessoa se surpreenderá com o fato de que repetidamente novas perspectivas venham a se abrir à nossa compreensão, iluminadas por essas mesmas verdades. Isto também se aplica às duas verdades gêmeas do nosso texto, que agora passaremos a considerar em mais detalhe.
“Protegendo a si mesmo, se protege os outros” – a verdade dessa afirmação tem origem em um nível extremamente simples e prático. O primeiro nível material dessa verdade é tão evidente que não são necessárias mais do que algumas palavras a respeito. É óbvio que a proteção da nossa própria saúde contribui muito para a proteção da saúde dos outros que compartem o nosso ambiente, especialmente no que diz respeito a doenças contagiosas. A cautela e a circunspecção em todas as nossas ações e movimentos irão proteger os outros dos danos que lhes possam ocorrer pela nossa falta de cuidado e negligência. Dirigir com cuidado, abstenção de álcool, autocontrole nas situações que possam conduzir à violência – nessas e em muitas outras maneiras, podemos proteger os outros ao protegermos a nós mesmos.

O Nível Ético

Chegamos agora ao nível ético dessa verdade. A nossa própria proteção moral irá proteger os outros, os indivíduos e a sociedade, das nossas paixões desenfreadas e impulsos egoístas. Se permitirmos que as três raízes do mal – cobiça, raiva e delusão – tomem conta do nosso coração, então os seus rebentos irão se espalhar em todas as direções como se fossem uma trepadeira, sufocando tudo aquilo de nobre e saudável que tente crescer à sua volta. Mas se nos protegermos dessas três raízes, os nossos semelhantes também estarão a salvo. Eles estarão a salvo da nossa cobiça irresponsável por posses e poder, da nossa luxúria e sensualidade desenfreadas, da nossa inveja e ciúme; a salvo das conseqüências maléficas da nossa raiva e inimizade que podem ser destrutivas ou até mesmo criminosas; a salvo das nossas explosões de raiva e da atmosfera de antagonismo e conflito resultante, que pode fazer com que a vida lhes seja insuportável.

Os efeitos maléficos que a nossa cobiça e raiva possuem sobre os outros não estão limitados às ocasiões em que eles se tornam objetos passivos ou vítimas da nossa raiva, ou quando as suas posses se tornam o objeto da nossa cobiça. Ambos a cobiça e a raiva possuem um poder contagioso que multiplica imensamente os seus efeitos maléficos. Se nós mesmos não pensarmos noutra coisa que não seja cobiçar e agarrar, adquirir e possuir, tomar e se apegar, então estimularemos ou reforçaremos esses instintos possessivos nos outros. A nossa má conduta poderá se tornar o padrão de comportamento para aqueles que nos cercam – nossos filhos, amigos e colegas. Nossa própria conduta poderá induzir os outros a que se juntem a nós na satisfação ordinária dos nosssos desejos predatórios; ou podemos estimular neles sentimentos de ressentimento e competitividade. Se estivermos plenos de sensualidade, poderemos também despertar neles o fogo do desejo. A nossa própria raiva poderá provocar neles a raiva e a vingança. Poderemos também nos aliar com os outros ou instigá-los a cometer atos ordinários de raiva e inimizade. A cobiça e a raiva são de fato iguais a doenças contagiosas. Se nos protegermos contra essas infecções maléficas, estaremos também, pelo menos até certo ponto, protegendo os outros.

Proteção através da Sabedoria

Quanto à terceira raiz do mal, delusão ou ignorância, sabemos muito bem quanto dano pode ser causado aos outros através da estupidez, desconsideração, preconceitos, ilusões e delusões de uma única pessoa .

Sem conhecimento e sabedoria, as tentativas de proteger a si mesmo e aos outros em geral fracassarão. A pessoa verá o perigo apenas quando for muito tarde, ela não irá se precaver quanto ao futuro; ela não saberá os meios corretos e efetivos de proteção e ajuda Por isso, a própria proteção através do conhecimento e sabedoria são da maior importância. Ao obter o verdadeiro conhecimento e sabedoria, estaremos protegendo os outros das conseqüências danosas da nossa própria ignorância, preconceitos, fanatismo infeccioso e delusões. A história nos mostra que as grandes e destrutivas delusões em massa foram com freqüência acesas por um único indivíduo ou um pequeno grupo de pessoas. A própria proteção através do conhecimento e sabedoria irá proteger os outros dos efeitos perniciosos de tais influências.
Já indicamos de forma breve como a nossa vida particular pode ter um forte impacto sobre as vidas dos outros. Se deixarmos sem resolução as fontes reais ou potenciais de dano social dentro de nós mesmos, nossa atividade social externa será fútil ou marcadamente incompleta. Portanto, se estivermos motivados por um espírito de responsabilidade social, não deveríamos nos esquivar da dura tarefa do nosso próprio desenvolvimento moral e espiritual. A preocupação com as atividades sociais não deve se converter em uma desculpa ou escapatória para a tarefa primeira, que é de arrumar a própria casa primeiro.

Por outro lado, aquele que com seriedade se dedica ao seu desenvolvimento moral e espiritual será um força vigorosa e ativa para o bem no mundo, mesmo que ele não se dedique a alguma atividade social externa. Só o seu exemplo silencioso irá ajudar e encorajar muitos, mostrando que os ideais de uma vida abnegada e inofensiva podem na verdade ser vividos e que não são apenas temas de sermões.

O Nível Meditativo

Passamos agora ao nível mais elevado de interpretação do nosso texto. Ele está expresso nas seguintes palavras do sutta: “E como é, bhikkhus, que protegendo a si mesmo, ele protege os outros? Através da perseverança, desenvolvimento e cultivo dos quatro fundamentos da atenção plena.” A nossa própria proteção moral não terá estabilidade enquanto permanecer como uma rígida disciplina que se cumpre após um choque entre motivos e contra padrões conflituosos de pensamento e comportamento. Os desejos apaixonados e as tendências egoístas podem crescer em intensidade se a pessoa tentar silenciá-los apenas através da força de vontade. Mesmo havendo êxito temporário em suprimir impulsos apaixonados ou egoístas, o conflito interno não resolvido irá impedir o progresso moral e espiritual e deformar o caráter da pessoa. Além disso, a desarmonia interna provocada pela supressão forçada dos impulsos irá encontrar uma saída no comportamento externo. Poderá fazer com que o indivíduo se torne irritadiço, ressentido, dominador e agressivo em relação aos outros. Portanto, o dano pode vir para si mesmo bem como para os outros devido a um método equivocado de proteção de si mesmo. Somente quando a própria proteção moral tenha se tornado uma ação espontânea; quando ela surja tão naturalmente como o fechamento protetor da pálpebra contra a poeira – somente então a nossa estatura moral irá proporcionar proteção e segurança reais para nós e para os outros. Essa conduta virtuosa natural não nos é dada como um presente dos céus. Ela tem que ser conquistada através da repetida prática e cultivo. Portanto o nosso sutta diz que é através da prática repetida que a própria proteção se torna suficientemente forte para proteger os outros também.

Mas se essa prática repetida ocorrer apenas nos níveis prático, emocional e intelectual, as suas raízes não serão suficientemente firmes e profundas. Essa prática repetida também deve ser extendida ao nível do cultivo da meditação. Com a meditação, os motivos práticos, emocionais e intelectuais da nossa própria proteção moral e espiritual se tornarão nossa propriedade pessoal que não poderá ser perdida com facilidade. Portanto, neste caso, o nosso sutta está se referindo a bhavana, o desenvolvimento meditativo em seu sentido mais amplo. Essa é a forma mais elevada de proteção que o nosso mundo pode oferecer. Aquele que desenvolveu a sua mente com a meditação vive em paz consigo mesmo e com o mundo. Nele, nenhum mal ou violência terá origem. A paz e a pureza que ele irradia terá um poder inspirador, elator e será uma benção para o mundo. Ele será um fator positivo na sociedade, mesmo se viver em isolamento e em silêncio. Quando a compreensão e o reconhecimento do valor social de uma vida dedicada à meditação cessarem em uma nação, esse será um dos primeiros sintomas da deterioração espiritual.

Proteção dos Outros

Agora deveremos considerar a segunda parte da declaração do Buda, um complemento necessário à primeira: “E como é, bhikkhus, que protegendo os outros, ele protege a si mesmo? Através da paciência, não fazendo o mal, através de uma mente com amor bondade e compaixão (khantiya avihimsaya mettataya anuddayataya).”

Aquele cujo relacionamento com os seus semelhantes for governado por esses princípios estará melhor protegido do que com a força física ou com armas poderosas. Aquele que é paciente e tolerante evitará conflitos e disputas e fará amigos daqueles para com os quais tenha demonstrado uma compreensão paciente. Aquele que não apela para a força ou coersão raramente se tornará, sob circunstâncias normais, um objeto de violência já que ele não provoca a violência nos outros. E se ele for confrontado com a violência, fará com que ela termine logo pois não irá perpetuar a hostilidade através da vingança. Aquele que possui amor e compaixão por todos os seres, livre de inimizade, superará a má vontade dos outros e desarmará os brutos e violentos. Um coração compassivo é o refúgio de todo o mundo.
Podemos agora compreender como essas duas sentenças complementares do nosso texto se harmonizam. A proteção de si mesmo é a base indispensável. Mas a verdadeira proteção de si mesmo só é possível se não conflitar com a proteção dos outros; pois aquele que busca a sua própria proteção às expensas dos outros se tornará impuro e se colocará em perigo. Por outro lado, a proteção dos outros não deve conflitar com os quatro princípios da paciência, não fazer o mal, amor bondade e compaixão; e também não deve interferir com o livre desenvolvimento espiritual como é o caso de várias doutrinas totalitárias. Portanto, o conceito Budista de proteção de si mesmo exclui todo o egoísmo, e na proteção dos outros a violência e a interferência não têm lugar.

A proteção de si mesmo e a proteção dos outros correspondem às duas grandes virtudes gêmeas do Budismo, sabedoria e compaixão. A proteção correta de si mesmo é a expressão da sabedoria, a proteção correta dos outros é a expressão da compaixão. Sabedoria e compaixão, sendo os elementos primários da Iluminação ou Bodhi, encontraram a perfeição mais elevada no Perfeitamente Iluminado, o Buda. A insistência no desenvolvimento harmonioso de ambas é uma aspecto característico de todo o Dhamma. Nós as encontramos nos quatro estados sublimes (brahmavihara), em que a equanimidade corresponde à sabedoria e à auto proteção, enquanto que o amor bondade, a compaixão e a alegria altruísta correspondem à compaixão e à proteção dos outros.

Esses dois grandes princípios, da proteção de si mesmo e proteção dos outros, possuem a mesma importância para ambas, a ética do indivíduo e da sociedade, e harmonizam os objetivos de ambas. O seu impacto benéfico, no entanto, não se limita ao nível ético, mas conduz o indivíduo para cima, para as superiores realizações do Dhamma, enquanto que ao mesmo tempo provê um sólido fundamento para o bem estar da sociedade.

O autor crê que a compreensão desses dois grandes princípios, da proteção de si mesmo e proteção dos outros como manifestação das virtudes gêmeas de sabedoria e compaixão, é de vital importância para a educação Budista, tanto para os jovens como para os idosos. Elas são as pedras fundamentais para a construção do caráter e merecem um papel central no esforço global para o renascimento do Budismo.

“Eu protegerei os outros” – assim deveríamos estabelecer a nossa atenção plena e guiados por ela, dedicarmo-nos à prática de meditação em benefício da nossa própria libertação.

“Eu protegerei os outros” – assim deveríamos estabelecer a nossa atenção plena e guiados por ela, controlar a nossa conduta através da paciência, boas ações, amor bondade e compaixão, pelo benefício e felicidade de muitos.

Nyanaponika Thera
fonte: www.acessoaoinsight.net


19 de setembro de 2012

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