O que torna “maitri” uma abordagem tão diferente é o fato de não estarmos tentando resolver um problema. Não estamos lutando para afastar a dor ou para nos tornarmos uma pessoa melhor. Na realidade, estamos desistindo completamente de ter controle e deixando que os conceitos e ideais desmoronem.
Recebo muitas cartas da “pior pessoa do mundo”. Às vezes, essa pior pessoa está envelhecendo e sente que desperdiçou a vida. Às vezes, é um adolescente que pensa em suicídio e está procurando ajuda. Pessoas que causam a si mesmas momentos tão difíceis surgem em todas as idades, tipos e raças. O que há de comum entre elas é a falta de bondade amorosa em relação a si mesmas.
Recentemente, estava conversando com um homem que conheço há muito tempo. Sempre o considerei uma pessoa tímida, de bom coração, que passa mais tempo do que a maioria ajudando os outros. Nesse dia, estava completamente desanimado e sintindo-se um caso perdido. Tentando fazer uma brincadeira, perguntei: “Bem, você não acha que em algum lugar deste planeta deve haver alguém pior do que você?”. Ele respondeu com comovente sinceridade: “Não. Se quer mesmo saber o que sinto, acho que não há ninguém tão ruim quanto eu”.
Esse fato me fez lembrar uma tira de jornal de Gary Larson que vi uma vez. Duas mulheres estão atrás de uma porta trancada, espiando pela janela e olhando para um monstro que está parado na entrada da casa. Uma delas diz: “Calma, Edna. Sim, é um horrível inseto gigante, mas pode ser um horrível inseto gigante precisando de ajuda”.
Para muitos de nós, os piores momentos são aqueles que causamos a nós mesmos. Nunca é cedo ou tarde demais para praticar bondade amorosa. É como se sofrêssemos de uma doença terminal, mas ainda tivéssemos algum tempo de vida. Como não sabemos quanto, bem que poderíamos achar importante fazer amizade conosco mesmos e com os demais, nas horas, meses ou anos que ainda nos restam.
Diz-se que é impossível atingir a iluminação – sem mencionar satisfação e alegria – sem ver o que somos e fazemos, sem reconhecer nossos padrões e hábitos. Isso se chama maitri – o desenvolvimento da bondade amorosa e do amor incondicional por si mesmo.
Algumas vezes as pessoas confundem esse processo com autoaperfeiçoamento ou desenvolvimento pessoas. Pode acontecer de ficarmos tão presos ao processo de ser bom consigo mesmo que deixamos de prestar atenção ao impacto que estamos causando aos outros. Erroneamente, podemos acreditar que maitri seja uma forma de encontrar felicidade duradoura ou, como tão sedutoramente nos prometem os anúncios, que podemos nos sentir ótimos pelo resto da vida. Não se trata de bater em nossas próprias costas e dizer: “Você é o máximo” ou “Não se preocupe, querido, tudo vai dar certo”. Ao contrário, esse é um processo através do qual a autoilusão torna-se expostas de forma tão hábil e compassiva que não existem mais máscaras que possam nos esconder.
O que torna maitri uma abordagem tão diferente é o fato de não estarmos tentando resolver um problema. Não estamos lutando para afastar a dor ou para nos tornarmos uma pessoa melhor. Na verdade, estamos desistindo completamente de ter controle e deixando que os conceitos e ideais desmoronem.
Isso se inicia com a percepção de que nada do que ocorre significa um começo ou fim. É apenas o mesmo tipo de experiência humana normal que vem acontecendo às pessoas comuns desde o início dos tempos. Pensamentos, emoções, estados de humor e lembranças vêm e vão, e a presença básica do momento atual permanece sempre aqui.
Nunca é tarde para olhar a própria mente e isso se aplica a qualquer um de nós. Podemos sempre sentar e dar espaço para tudo aquilo que surge. Às vezes, esta experiência é perturbadora. Às vezes, tentamos nos esconder. Em outras, nossa experiência é surpreendente. Frequentemente somos arrebatados por ela. Sem julgamentos, sem pender para o que gostamos ou deixamos de gostar, podemos sempre nos encorajar a simplesmente estar ali mais uma vez, mais uma vez, e ainda mais uma vez.
O mais doloroso é que, quando nos desaprovamos, estamos praticando desaprovação. Quando somos severos, estamos reforçando a severidade. Quanto mais o fazemos, mais fortes tornam-se esses aspectos. É muito triste ver como nos tornamos especialistas em causar mal a nós mesmos e aos outros. O truque está em praticar a delicadeza e deixar fluir. Podemos aprender a encarar tudo o que surge com curiosidade, sem fazer disso algo muito importante. Em vez de lutar contra a força da confusão, podemos ir ao encontro dela e relaxar. Quando agimos assim, gradualmente descobrimos que a clareza está sempre ali. No meio do pior cenário da pior pessoa do mundo, no meio do penoso diálogo que mantemos conosco mesmos, o espaço aberto está sempre ali.
Carregamos uma imagem de nós mesmos, uma imagem que temos na mente. Esse processo pode ser descrito como “mente pequena”. Ou ainda como sem. Em tibetano, há diversas palavras para “mente”, mas duas – sem e rigpa – são especificamente úteis. Sem é o que experimentamos sob a forma de pensamentos discursivos, um fluxo de tagarelice que sempre reforça nossa autoimagem. Rigpa literalmente significa “inteligência” ou “brilho”. Por trás de todo planejamento e preocupação, do desejo e querer, do selecionar e escolher, a mente sábia e não-construída de rigpa está sempre ali. Quando pararmos de conversar conosco mesmos, rigpa estará continuamente ali.
No Nepal, os cães latem a noite inteira. A cada vinte minutos, mais ou menos, param todos ao mesmo tempo e experimenta-se um imenso alívio e quietude. Então, recomeçam. A mente pequena de sem parece-se exatamente com isso. Quando começamos a meditar, é como se os cães não parassem nunca de latir. Após um tempo, acontecem as lacunas. Os pensamentos discursivos são bastante semelhantes a cães selvagens que precisam ser domesticados. Em vez de bater neles ou lhes atirar pedras, nós os domesticamos com compaixão. Repetidamente, nós os observamos com precisão e a bondade necessárias para que eles aos poucos se acalmem. Às vezes, temos a sensação de que há muito mais espaço e ouvimos apenas alguns ganidos aqui e ali.
É claro que o barulho vai continuar. Não estamos tentando nos livrar dos cães. Mas, depois que tocamos essa experiência com a amplidão de rigpa, ela começa a permear tudo. Depois que tivermos um lampejo da amplidão, e se praticarmos com maitri, ela continuará a se expandir. Ela se expande em nosso ressentimento e em nosso medo. Ela se expande em nossos conceitos e opiniões sobre as coisas e sobre o que achamos que somos. Às vezes, podemos até mesmo ter a sensação de que a vida é como um sonho.
Quando eu tinha aproximadamente 10 anos, minha melhor amiga começou a ter pesadelos. Neles, ela corria em um prédio enorme e sombrio, perseguida por monstros terríveis. Ela chegava a uma porta, lutava pra abri-la e, assim que a havia fechado atrás de si mesma, sentia que era aberta pelos monstros que se aproximavam rapidamente. Finalmente acordava, chorando e gritando por socorro.
Um dia, estávamos na cozinha da casa dela conversando sobre esses pesadelos. Quando lhe perguntei qual era a aparência dos demônios, ela disse que são sabia, porque estava sempre fugindo. Depois dessa conversa, começou a imaginá-los, pensando se eles se pareceriam com bruxas ou se algum deles teria uma faca. No pesadelo seguinte, assim que os demônios começaram a perseguí-la, ela parou de correr e virou-se. Foi preciso uma tremenda coragem e seu coração batia forte, mas ela se encostou na parede e olhou para eles. Todos pararam bem na sua frente e começaram a pular, mas nenhum se aproximou. Ao todo eram cinco, cada um se parecendo um pouco com um animal. Um era um urso cinzento que, no lugar de garras, tinha longas unhas vermelhas. Um possuía quatro olhos. Outro, tinha um ferimento ao lado da boca. À medida que ela olhava mais de perto, pareciam-se menos com monstros e mais com os desenhos em duas dimensões das histórias em quadrinhos. Então, lentamente, começaram a desaparecer. Ela acordou em seguida, e esse foi o fim dos pesadelos.
Há um ensinamento sobre os três tipos de despertar: despertar do sonho do sono normal; despertar, ao morrer, do sonho da vida; e despertar, em plena iluminação, do sonho da ilusão. Esses ensinamentos dizem que, quando morremos, nossa experiência assemelha-se a despertar de um sonho muito longo. Quando ouvi isso, lembrei-me dos pesadelos de minha amiga. Então, ocorreu-me que, se tudo isto é realmente um sonho, posso muito bem passar por ele tentando olhar para o que me assusta, em vez de fugir. Nem sempre achei isso tão fácil assim de fazer. Entretanto, nesse processo, aprendi muito sobre maitri.
Nossos demônios pessoas assumem muitos disfarces. Nós os experimentamos como vergonha, ciúme, abandono e raiva. Eles são tudo aquilo que nos deixa tão infelizes, obrigando-nos a fugir continuamente.
Fugimos em grande estilo: dissimulamos, dizemos algum coisa, batemos a porta ferimos alguém ou atiramos um vaso, para não ter de enfrentar o que está acontecendo em nosso coração. Ou, então, escondemos nossos sentimentos e, de alguma forma, amortecemos a dor. Podemos passar a vida toda fugindo dos monstros de nossa mente.
No mundo todo, as pessoas estão tão presas aos processos de fuga que se esquecem de tirar proveito da beleza que as cerca. Ficamos tão acostumados a correr sempre para frente que roubamos de nós mesmos a alegria.
Certa vez, sonhei que estava preparando uma casa para receber Khandro Rinpoche. Corria de um lado para outro limpando e cozinhando. De repente, o carro chegou, e ali estava ela com sua auxiliar. Quando corri para cumprimentá-la, Rinpoche sorriu e perguntou: “Você viu o sol nascer esta manhã?”. Eu respondi: “Não, Rinpoche, estava ocupada demais para ver o sol”. Ela riu e disse: “Ocupada demais para viver?”.
Às vezes, parecemos preferir a escuridão e a pressa. Podemos protestar, reclamar e guardar rancor durante mil anos. Entretanto, no meio da amargura e do ressentimento, vislumbramos a possibilidade de maitri. Ouvimos um choro de criança ou sentimos o cheiro do pão que alguém assando. Sentimos o frescor do ar ou vemos a primeira flor brotar na primavera. Apesar de nós mesmos, somos despertados pela beleza, em nosso próprio quintal.
Para dissolver nossa resistência diante da vida, devemos encará-la de frente. Quando sentimos irritação porque a sala está quente demais, podemos ir ao encontro do calor e sentir como ele é causticante e pesado. Quando estamos irritados porque a sala está fria demais, podemos ir ao encontro do frio e sentir como ele é intenso e penetrante.
Quando queremos reclamar da chuva podemos, em vez disso, sentir sua umidade. Quando nos sentimos inquietos porque o vento está batendo as janelas, podemos ir ao encontro dele e ouvir seus sons. Interromper nossa expectativa de solução é um presente que podemos dar a nós mesmos. Não há solução para o frio ou calor. Eles sempre existirão. Mesmo depois de morrermos, o fluxo e o refluxo continuarão, assim como as marés, o dia e a noite – essa é a natureza das coisas. Ser capaz de apreciar, de olhar de perto, de abrir nossa mente – essa é a essência de maitri.
Rios e ar poluído, famílias e países em guerra, desabrigados vagando pelas estradas – esses são sinais tradicionais de épocas sombrias. Outro sinal é as pessoas serem envenenadas pela insegurança e tornarem-se covardes.
Praticar bondade amorosa consigo mesmo parece-nos um bom método para começar a iluminar a escuridão dos tempos difíceis.
Estar ocupado demais com a própria autoimagem é estar surdo e cego. É como estar no meio de um grande campo florido com uma venda nos olhos. É como usar protetores de ouvido ao chegar perto de uma árvore onde os pássaros estão cantando.
Existe muito ressentimento e resistência à vida. Em todos os países, isso é como uma praga que fugiu ao controle e está envenenando a atmosfera do mundo. Nessa altura dos acontecimentos, seria sensato pensar sobre essa situação e acostumar-se a desenvolver a bondade amorosa.
Pema Chödrön
Quanto Tudo se Desfaz
(pp 27-33)
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