Jardim dos Mestres

Um modo de viver plenamente

Onde quer que se vá, Europa, Índia, Austrália ou América, encontra-se basicamente os mesmos problemas humanos. A maior parte das pessoas está confusa, vivendo contraditoriamente, totalmente infelizes, miseráveis e submetidos a um considerável grau de sofrimento. Do nascimento até a morte, a vida parece um verdadeiro campo de batalha. Pelo mundo afora, com base em diferenças nacionalistas, lingüísticas e religiosas, os homens opõem-se uns aos outros, cada um afirmando que sua forma de vida é a melhor. Há divergências resultando em conflito e guerra. Há discórdia no mundo dos negócios, no mundo espiritual, religioso, científico e acadêmico.

Diante de tanta desunião, profundo caos e miséria de tal magnitude, uns se perguntam, e estou certo de que você também o faz, que atitude tomar, que direção seguir – a esquerda, o centro ou a direita? Porventura o caminho seria aquele ditado por alguma ideologia, crença ou sentença de autoridade? Ou deveríamos seguir uma direção independentemente de qualquer autoridade, que não seria a direita, nem a esquerda, nem o centro; desvinculada de qualquer guru, padre ou organização religiosa? Deveríamos, talvez, seguir nossa própria inclinação, tendência, com base em nossa própria experiência e conhecimento, sendo autoconfiantes, ousados e determinados? Há tantas contradições exterior e interiormente! O que fazer? Certamente você já se questionou várias vezes a respeito. Se você é uma pessoa séria, que não está apenas procurando diversão, realmente vai se fazer essa pergunta diante de um mundo tão caótico, contraditório, dividido, sabendo muito bem que, uma vez perdida a fé, não se confia em ninguém, nem em professores, nem em padres, nem em qualquer impositiva utopia. Se você é tão sério – e eu espero que seja – deve não só ter-se feito essa pergunta como também ter encontrado uma resposta para esse desafio de descobrir o que fazer sem apoiar-se em ninguém. Onde procurar por luz e entendimento, sem tornar-se dependente de nenhum salvador, professor ou autoridade? Se a vida é um fluxo contínuo de ação, o que fazer?

Esses encontros não são um entretenimento filosófico, uma diversão religiosa e, de forma alguma, uma investigação filosófica da existência. Não estamos aqui – pelo menos não eu – para nos debruçarmos sobre as suas ou as minhas idéias particulares. O que estamos tentando fazer é, confrontados com essa extraordinária questão existencial, com todas as suas contradições e complexidades, encontrar a nós mesmos, encontrar um curso de ação que não seja contraditório, mas que seja pleno, completo e não produza mais agonia, mais prejuízo e confusão. Esse é o nosso problema e eu penso que o único problema da vida: encontrar uma forma de vida não fragmentada, não contraditória, mas contínua, plena, total e completa, que não traga mais desordem e sofrimento.

Se você quiser, abordaremos juntos essa questão, tendo em mente que o orador não tem, em absoluto, qualquer autoridade, porque nós ambos vamos examinar juntos, observar esse fenômeno denominado vida e descobrir a verdade a respeito da existência de uma ação, de um modo de vida – não apenas nos momentos críticos ou nas grandes crises, mas a cada dia, a cada minuto – onde haja júbilo, onde não haja violência, brutalidade, contradição e obviamente, submissão e dependência. Podemos encontrar uma maneira de viver, não uma idéia abstrata, uma concepção filosófica, uma teoria, mas efetivamente um modo de vida que seja uma ação completa, plena e totalmente não contraditória? Sinto que essa forma de vida é a única forma religiosa, e nenhuma outra. Estamos usando a expressão religiosa ou religiosidade não no sentido comum da palavra, que significa acreditar em alguma coisa, acreditar ou não em Deus ou em alguma concepção conceitual. Estamos usando a expressão para nos referirmos a um modo de viver pleno, completo e cheio de êxtase. Vamos partir daí.

Primeiramente, para compreender tudo isso, devemos estabelecer claramente a relação que existe entre nós, entre vocês e o orador. Ele não está ensinando no sentido usual da palavra, não está dizendo o que você deve fazer. A expressão ensinar é fornecer informação, fazer com que alguém compreenda, indicar, informar. Quem ensina matemática, fornece informação científica, mas aqui não há professor e precisamos enfatizar isso, porque cada um de nós deve ser o próprio professor e o próprio discípulo – esse é um ponto fundamental – então a maneira de ouvir é diferente. Vocês ouvem o orador, as palavras que ele usa e, entendendo tais palavras e atentando para as suas próprias reações, respostas e situação, então você mesmo pode, por sua própria observação, aprender, e então o orador se torna um espelho no qual você observa a si próprio.

Então, a relação entre você e o orador baseia-se na comunicação, comunicação partilhada, entendimento conjunto, trabalho conjunto. Isso é o que a palavra comunicação significa: comungar. Por favor, tenha isso em mente durante nossos diálogos. Isso significa que você trabalha tanto quanto o orador; você está observando, ouvindo. E observar e ouvir não implica concordar ou discordar, porque não estamos lidando com teorias e idéias, mas ouvindo para descobrir e entender a nós mesmos. Porque nós somos o mundo. Quer vivamos neste maravilhoso país de sol adorável e brilhante, montanhas e a beleza da terra, prósperos, brutais ou violentos, pertencentes a este ou àquele grupo, com apenas um assim chamado mestre espiritual ou com inúmeros professores, nós somos como ninguém mais na Europa, América ou Índia. Somos seres humanos, não rótulos. Na Índia, a explosão demográfica é inacreditável e a pobreza inimaginável. Há ruína, violência, brutalidade e há também a beleza da terra, a luz e as pessoas que, como aqui, agonizam em problemas, num sofrimento que parece não ter fim.

Portanto, não estamos lidando com uma filosofia asiática, uma religião exótica, ou criando algum significado para dar sentido à vida. Podemos deixar isso aos intelectuais; eles podem inventar todos esses sentidos e significados para a vida, porque eles próprios percebem a total falta de sentido dessa existência. Mas vendo tudo isso, não como uma teoria, não como algo alheio a você, mas vendo que, efetivamente, trata-se de sua vida, de sua contradição diária, de sua batalha diária, de suas irritações diárias, raiva, ódio, brutalidade, podemos notar, se tudo isso puder terminar, que poderemos então, viver um tipo de vida realmente diferente, livre e que não resulte em miséria; uma vida que seja verdadeiramente completa e totalmente pacífica.

Percebendo tudo isso, o que faremos, cientes de que nós somos a sociedade e a sociedade somos nós? Nós somos o mundo e vice-versa. Não é apenas uma idéia, é um fato. Você criou este mundo, com sua ganância, ira, ambição, competição, violência. Interiormente você é isso e exteriormente você é suas lutas, todas essas divisões, os negros e os brancos, preconceito, antagonismo, brutalidade.

Você sabe disso. Quer você tenha apenas uma noção, quer você efetivamente saiba, você tem conhecimento disso através de uma revista, um jornal ou do que dizem as pessoas. Você pode ter observado isso em si mesmo, afinal não há necessidade de que outra pessoa lhe descreva como é o mundo. Você não precisa ler sequer um jornal ou revista, nem ouvir o que diz qualquer pessoa, se você próprio sabe o que é. Quando você assimila o que você é, então a questão sobre o que fazer assume outra dimensão, totalmente diferente, porque você percebe que está confuso, assim como o mundo está; você vive em contradição e divisão, tal qual vive o mundo. Quando você atinge a compreensão de si mesmo, não apenas no nível consciente, mas também muito, muito profundamente, não porque concorda com algum psicanalista, mas porque entende a si mesmo como você é, então a questão sobre o que fazer torna-se completamente diferente. Você colocava a questão em relação ao mundo, como se o mundo fosse algo exterior a você. Mas quando você assimila, não verbalmente, não simplesmente como uma idéia, mas verdadeiramente, que você é o mundo, então sua responsabilidade para com esse mundo é a responsabilidade de compreender completamente a si mesmo. Daí a questão do que fazer assume uma dimensão diferente.

Como perceber-se, observar-se, enquanto ser humano? Você não é um americano, embora possa ostentar esse rótulo. Um homem que veio da Índia, com suas crenças e superstições particulares pode intitular-se indiano, mas quando você descarta tudo o que está em volta, ele é apenas um ser humano, como você, eu e inúmeros outros.

Portanto, a questão é: como observar, perceber a si mesmo como mundo e não somente como indivíduo. A palavra indivíduo significa uma entidade una, indivisível. Indivíduo significa um ser humano onde não habita a contradição, divisão, separação. Ser humano que é pleno, harmonioso, uno. Essa palavra “o indivíduo” significa isso: indivisível. Você não é indivíduo, porque está fragmentado, contraditório em si mesmo. Como ver a si mesmo? Por favor, ouçam, isso é absolutamente interessante e demanda um razoável grau de inteligência. É realmente curioso, mais que qualquer livro, espetáculo religioso, qualquer filosofia. Como seres humanos fragmentados em nós mesmos, cheios de desejos contraditórios, sentimentos de inferioridade e superioridade, covardes, sem amor, solitários, realmente despedaçados, não apenas superficial, mas profundamente, como vamos nos perceber, nos testemunhar? Um fragmento, uma parte observa as demais? Um se torna o julgador, o examinador, o observador dos fragmentos restantes? E o que lhe daria esta autoridade sobre as demais partes?

Você percebeu em si mesmo que é um ser humano dividido, fragmentado. Sabendo disso, pergunta-se: quem é o observador, quem é o censor que define: “Eu farei isso, não farei aquilo; isso é certo, isso é errado; esse caminho seguirei e não trilharei aquele outro; serei um pacifista com relação a essa guerra, mas a outras favoreço; seguirei este líder e não aquele outro; acredito nisso e não naquilo; este preconceito manterei e rejeitarei aquele”? Fragmentados, contraditórios, vivendo em constante conflito, observando esse conflito como um fragmento entre tantos, muitos assumem o comando, tornam-se autoridades, censores e suas observações serão, inevitavelmente, contraditórias. Se uma parte assume o papel de analisar as demais, de onde lhe vem tal autoridade? Pode um fragmento julgar os demais?

Veja quão terrivelmente complexo isso se tornou! Se você é analisado por um profissional ou por si mesmo é ainda o mesmo padrão. Portanto, é importante descobrir como observar todas essas contradições que constituem nossas vidas. Como observar a totalidade desses fragmentos sem faltar qualquer deles. Está claro? Por favor, tentem solucionar essa questão, porque enquanto há contradições, divisões em cada um, haverá conflito, violência que se refletirá no mundo exterior, na sociedade. Enquanto a divisão existir em uma parte, não haverá paz e quem realmente, profundamente, desejar entender e viver uma vida de paz e amor, deve compreender essa questão completamente. É um tema muito sério, não se trata de ler umas poucas palavras. Estamos abordando a questão da existência e só a mente que puder atentar seriamente para ela poderá resolvê- la. Faz-se portanto imperativo que se entenda o questionamento.

Como observar? Testemunhar a si mesmo, como um espectador alheio, um julgador que aponta o certo e o errado, justificando, condenando, aprovando? Se assim for, permanece a contradição, o conflito e a violência. Então como proceder? Como perceber não apenas a si mesmo mas ao mundo em você? Os pássaros, as árvores, animais, flores… Como percebê-los? Você é o observador separado do objeto de sua observação? Por favor, acompanhe-me, dedique algum tempo e atenção, porque se pudermos comungar juntos, partilhar juntos, entender juntos, então vocês verão, no fim das contas, que o seu panorama, sua perspectiva da vida será totalmente diferente, se você compreender essa questão fundamental.

Como observar? Através de uma imagem? Quando se observa uma árvore, você a observa com o conhecimento anteriormente adquirido de que é uma árvore. O conhecimento separa você da árvore, divide, cria um espaço entre você e ela. Como, então, você a percebe? Como você percebe seu marido, sua esposa, seu filho ou filha? Por favor, faça isso enquanto falamos. Não tome notas, não vagando por aí com um gravador. Observe. Como você olha para o outro? Como o percebe? Você não o olha através de uma imagem que já construiu dele ao longo de anos ou mesmo de alguns dias? A imagem torna-se o observador e é através dela que você vê. Então o observador – que é apenas uma das partes, um dos fragmentos – tem uma noção de certo e errado, do que deve ou não deve ser feito, porque ele ainda funciona como uma parte, ele ainda está fragmentado.

Daí emerge a questão: será alguém capaz de observar a si mesmo, ao mundo, sem qualquer divisão? O que conduz à fragmentação, não apenas em cada um, mas no mundo em que cada um se constitui? O que leva a isso? Por que a fragmentação, por que os desejos contraditórios? Por que a violência brota como fruto dessas contradições? Deve haver causas pelas quais os seres humanos são violentos. Pode ser carência de espaço físico. O homem evoluiu do animal e animais são muito agressivos. As pessoas adoram ser agressivas. Sentindo-se inferiorizadas, querem ser superiores, etc. Há muitas causas. A maioria de nós despende tempo discutindo as causas, explicando-as. Cada professor, cada especialista, cada escritor explica tais causas, de acordo com seu condicionamento. Volumes são escritos sobre o porquê da violência humana, mas, a despeito deles, o homem permanece violento.

Então a definição não corresponde ao definido e, portanto, é de pouca valia. Vocês sabem muito bem porque são violentos. Não têm que gastar tempo tentando descobrir a causa dessa violência. Seria um desperdício. Observe a violência, perceba-a tal como ela é, sem separar o censor, sem separar a si mesmo do fato de que é violento.

Veja, é fundamental entender isso, portanto vamos aprofundar mais um pouco… Suponha que eu seja agressivo, furioso, ciumento, embrutecido, movido pela ambição, que leva à competição e assim, estou sempre me comparando com alguém. Essa comparação faz com que eu me sinta inferiorizado diante de vocês. Então ocorre uma luta, violência e todas essas coisas. E eu digo a mim mesmo: “Tenho que me livrar disso. Quero viver em paz. Apesar de o homem viver assim por milhares de anos, é preciso que haja uma mudança. Deve haver uma mudança na sociedade, por pior que ela esteja.” Daí eu me lanço ao trabalho social, esquecendo, conseqüentemente de mim mesmo. Mas o trabalho social e a sociedade são eu mesmo e então percebo os truques que a mente faz. Agora vejo a mim mesmo e percebo que sou violento.

Como perceber essa violência? Como o julgador que a condena? Ou justificando-a? Como alguém incapaz de lidar com essa violência e que por isso foge dela? Como perceber a mim e a essa violência? Por favor, experimente. Você está olhando como um observador alheio à violência, que condena, justifica e diz: “Isso é bom”, então faço? O observador percebe a violência, distanciado dela e a condena? Ou o observador é observado? Ele reconhece a violência e a separa de si mesmo, a fim de fazer algo a respeito, mas essa separação é apenas um dos truques de seu pensamento. O observador é o observado e é a violência. Enquanto houver essa fragmentação, esse distanciamento entre observador e observado, haverá violência.Quando eu captar, não verbalmente, mas realmente com o coração, a mente, com todo o meu ser, então o que ocorre?

Você sabe que quando observa algo, há sempre não somente a separação e o distanciamento do observado, mas também o desejo de identificar-se com o que é bonito, nobre e de não identificar-se com o que não é. Então a identificação é parte de um truque da mente que separa a si mesma, tornando-se o censor e tenta identificar- se com o que observa. Considerando que, quando o observador torna-se consciente de que é parte do que é observado, e ele é, conseqüentemente, não há imagem, representação entre observador e observado, então percebe-se que o conflito se extingue por completo.

Isso é verdadeira meditação. Não apenas um truque. Portanto, é muito importante, imperativo compreender-se profundamente, todas as reações, todos os condicionamentos, os vários temperamentos, características, tendências. Apenas testemunhar, sem o observador. Observar sem o observador. Esse é o ato de aprender e, portanto, essa é a ação (Krishnamurti aqui se refere à “ação que é completa”, mencionada no quarto parágrafo do texto).

Aqui há uma dificuldade. Alguém se testemunha, alguém quer aprender sobre si mesmo e, quanto mais você descobre, quanto mais entende, maior é a liberdade. Estou usando a palavra “mais” propositalmente, “mais” representa uma avaliação comparativa. Eu quero me compreender, aprender sobre mim mesmo. Observe-se. Por favor, faça isso enquanto o orador discursa. Faça-o realmente, não deixe escapar. Pense a respeito agora. Este não é um grupo de terapia, um confessionário e todas essas coisas sem sentido, mas testemunhe-se enquanto trabalhamos juntos.

Eu quero aprender sobre mim mesmo e eu sou movimento dinâmico. Cada desejo contradiz o outro, eles estão vivos, movimentam-se, são vitais. Eu observo e durante a observação, aprendo. Com o que aprendi vou olhar para o minuto seguinte. Vou olhar e observar com o que adquiri através da observação anterior. Estarei aprendendo, isso é aprender enfim? Porque quando a mente observa com o conhecimento acumulado de suas análises, esse conhecimento obsta a percepção, impede a liberdade de olhar. Veja a dificuldade. A mente pode observar sem a acumulação? A acumulação, o que foi acumulado é o observador, é o censor, é o ente condicionado. Portanto, olhar sem o que foi acumulado.

Veja, alguém o lisonjeia dizendo quão agradável você é, quão bonito, inteligente e quão estúpido. Você pode ouvir o que ele diz, que você é estúpido ou esperto, ou muito isso ou muito aquilo, sem a bagagem acumulada? Isto é, sem o acumulado insulto ou elogio, porque se você ouve considerando a bagagem de conhecimento que já tem, então o outro se torna seu amigo ou seu inimigo. O que você ouve e como você ouve criam uma imagem e essa imagem separa e causa conflito. A imagem que você tem dos comunistas, da burguesia, dos católicos se você é protestante, e a dos católicos a respeito dos protestantes, a imagem que você tem de seu marido, de sua esposa ou do que quer que seja. Você crê, outro não crê e então, há controvérsia. Como perceber sem separar? Você pode testemunhar no instante da violência, em seu momento de ira, sem o julgador?

Perceba como isso é difícil se você não está alerta no momento, porque você já terá criado a imagem. Então observe uma nuvem, sua beleza, sua luz, observe as adoráveis colinas nesse país, a luz incidindo na água, apenas observe, sem classificar, porque a classificação, o conhecimento, a experiência, impedem a mente de observar na totalidade. Quando a mente pode olhar sem o observador, toda a cisão desaparece em si mesma. E alcançar essa compreensão é muito importante. Isso não pode ser ensinado, vem de testemunhar a si mesmo, de perceber-se todo o tempo. Sabe, é curioso você não justificar ou condenar, apenas observar o que é, não apenas o que é politicamente – toda a chicana dos políticos – mas também todos os dogmas religiosos, os sistemas e superstições, apenas percebendo-os dentro e fora de você. Essa mente que testemunha torna-se extraordinariamente sensitiva, viva, porque não está produzindo conflitos. E aí podemos abordar a questão do medo, do que é o amor, do que é a morte, mas sem compreender esse tópico fundamental, a simples averiguação, a investigação do medo permanece sem solução. E então pararei.

Talvez agora, se desejarem, vocês possam fazer perguntas a respeito de nossa conversa. Uma das coisas no que se refere a perguntas é que vocês devem perguntar corretamente, fazer a pergunta certa e isso é bem difícil. Mas devemos perguntar, não apenas a nós mesmos, mas a todos que podem pensar. E devemos duvidar, ser céticos e também saber quando não ser cético. É como um cão na coleira, você sabe quando soltá-la e quando puxá-la. Mas a maioria de nós teme até mesmo fazer perguntas, a respeito de nós mesmos primeiramente e também dos outros, porque no perguntar nós nos expomos e preferimos que essa exposição não ocorra. Essa é uma das causas do medo. Tudo isso não significa que o orador os esteja impedindo de perguntar.

Pergunta: Quando o objeto de observação se torna o observador, como você remove a contradição ou o conflito?

K: Nós jamais dissemos que o observador se torna o observado. O observador de uma árvore não se torna uma árvore. Deus não o permita! Mas, quando o observador entende sua própria natureza e estrutura, então ele observa sem separação e então há a observação sem o observador. Ficou claro? Veja, no momento em que tento identificar-me com algo, aí já há a divisão, caso contrário eu não me identificaria com outra coisa. Porque existe divisão, oposição, brecha, discussões, ódio, eu tento superar essa divisão através da identificação. Considerando que dissemos que o observador é a causa da divisão, o observador é a divisão. Há violência pelo mundo todo, crescendo mais e mais a cada dia. Enquanto um ser humano é violento e sabe disso, outro cultiva um ideal de não-violência, um ideal. Por favor, acompanhe só por um momento , se lhe interessa. Então há o fato, “o que é”, o que é a violência, a violência atual da vida e há uma idéia de não-violência – o que “é” e o que “devia ser”. Certo? Então há contradição. O homem violento tem um ideal de não-violência e portanto ele está o tempo todo tentando ser “não- violento”, está fingindo, sendo hipócrita. Mas o fato é que ele é violento e ele confia no seu ideal para deixar a violência. E veja, há espaço entre “o que é” e “o que devia ser”. Por favor, acompanhe, perceba o disparate dessa situação. Ele está sempre tentando mudar. Está gastando sua energia para transformar-se em algo que não é. Agora, quando a mente está completamente livre do ideal – e, de qualquer modo, todos os ideais são estúpidos – então você encara e a mente pode enfrentar “o que é” a violência . E aí como você percebe a violência? Você a percebe com a imagem que tem, que diz que você não deve ser violento ou a mente observa sem o observador? O que significa não identificar-se a si mesmo, a mente não se ocupando em identificar-se com a violência, mas sendo livre para olhar e, portanto findando o conflito entre o observador e o que é observado. A extinção do conflito é a extinção da violência.

Pergunta: Você está dizendo que devemos observar sem o observador?

K: Eu sei. A senhora pergunta: “Você está dizendo que devemos observar sem o observador?”. Tente, faça isso. Você pode perceber uma flor, um pássaro, as águas, a beleza da região, sua esposa, seu marido, sem o observador, o que significa dizer sem as imagens que você tem deles? Faça isso e você verá quão extraordinariamente atento você tem de ser, não apenas agora, mas quando a imagem está sendo construída, então sua mente será livre para olhar. Você já olhou realmente para alguém? Não para um estranho que não é importante para você, mas você já olhou para alguém de quem você goste? Ou ame? Já? Você olhou para a pessoa através da imagem que tem dela ou dele. E a relação aconteceu entre estas duas imagens. E é por isso que há tanto antagonismo. E esta é a causa de não haver realmente nenhum relacionamento.

Isso suscita a questão: O que é o amor? Talvez este não seja o momento apropriado para falarmos disso, mas o faremos. Quando alguém diz “eu te amo”, o que está amando? Veja isso. Quando você diz para o outro “eu te amo”, o que você está amando? A imagem que tem dela ou dele, que pensamento brota? E o amor é o cultivo do pensamento? Quando você diz “eu amo música”, o que é que você ama? O seu prazer?

Então torna-se extremamente importante entender as relações, porque toda a vida é relacionamento, viver é relacionar-se. Nós fizemos destas relações tal horror e a este horror batizamos de amor, porque nele, ocasionalmente, há ternura, talvez no sexo ou quando você vê algo lastimável. Portanto, tem-se que descobrir o que significa relacionamento, não pelo dicionário, pelo professor, não pelo analista ou por alguma organização religiosa, grande ou pequena, mas tem-se que descobrir por si mesmo, descobrir para si mesmo e em si mesmo. E você verá que o mundo inteiro está em você, você não tem que ler algo, porque você é a plenitude da humanidade. Até que você compreenda isso profundamente, o amor não existe, só o prazer existe.

Pergunta: Como alguém pode libertar-se do conhecimento acumulado de forma a ser capaz de observar?

K: Veja, se você não tivesse qualquer conhecimento acumulado, você não poderia voltar para casa, não seria capaz de reconhecer sua mulher, amigo ou marido. Por favor, perceba a dificuldade disso. Você precisa desse conhecimento para trabalhar, para falar inglês, italiano ou o que quer que seja, para ir para casa. Mas perceba como esse conhecimento destrói os relacionamentos, sendo a imagem que você construiu do outro em anos de convivência, ou mesmo num único dia – as reclamações, as feridas, a agressividade, a irritação, os prazeres, o companheirismo, o bem estar. Essa imagem, que é conhecimento, está impedindo o correto relacionamento. Então você precisa de conhecimento para seu desempenho no escritório, no laboratório, na matemática, mas esteja ciente do perigo desse conhecimento, da acumulação e da construção de imagens nas relações. Estar consciente de onde esse conhecimento é essencial e também do perigo que ele representa é ter inteligência. Tem-se que estar extraordinariamente alerta.

Pergunta: Tentando observar inteligentemente, olhando para tudo com muita clareza, descubro que é muito doloroso e a dor é muito dispersiva, isso destrói a observação.

K: Eu não compreendo porque seria doloroso. Alguém observa. Veja, senhor, eu observo a mim mesmo e vejo que sou estúpido. Por que isso seria doloroso? Porque estou me comparando com outra pessoa que é muito inteligente e, portanto essa comparação me faz sofrer, porque eu me descubro inferior?

Participante: Isso pode ser verdade, mas é doloroso.

K: Vamos continuar, senhor, veja bem. É doloroso porque eu me comparei com outra pessoa? Comparação – por que eu comparo afinal, comparar “o que é” com “o que deveria ser”? Por que eu comparo? Comparando, eu me descubro inferior e isso me faz sofrer. E, conseqüentemente, eu não examinarei, não olharei, eu apenas seguirei em frente. Eu vou fugir. Então a questão é por que eu comparo afinal?

Suponha que eu diga a mim mesmo que sou estúpido. Como eu sei que sou estúpido se não comparar? Eu só sei que sou estúpido porque me comparei com alguém que é esperto. Então a comparação me traz dor e conflito. Haveria estupidez se eu não me comparasse? Posso viver sem comparações? Queremos dizer comparação psicologicamente, porque eu tenho que fazer comparações entre duas cores, entre muitas coisas, mas interiormente, psicologicamente, qual é a necessidade de comparação entre “o que é” e “o que devia ser”? Por que deveria haver tal comparação? Não seria a comparação um desvio, uma distração de “o que é” e portanto, impedindo a compreensão deste mesmo “o que é”?

Então viva – faça isso, e você descobrirá – viva sem a comparação, que não significa presunção, convencimento. Ao contrário, a totalidade de sua mente está testemunhando tudo. Nós pensamos que compreendemos apenas através da comparação, mas você realmente entende qualquer coisa através dela? Você entende seu segundo filho, porque o compara com o primeiro? Quando compara A com B, você não destrói A? Você não quer moldá-lo a B? E essa é toda a estrutura da nossa educação, ser como alguma outra pessoa, ser o herói, ainda que você destrua, negue o herói, você copia alguém, o que é sempre comparativo.

Experimente. “Experimentar” significa tentar, testar isso na vida prática. Viva sem qualquer comparação psicológica e veja o que acontece com você.

Pergunta: Em uma sociedade autoritária como se pode fazer isso?

K: Nós dissemos que a sociedade é você, você criou a sociedade. Você louva a autoridade. Então novamente tem-se que abordar essa questão da autoridade; a autoridade da lei, que é manter-se do lado esquerdo da rodovia, pagar taxas e tudo o mais, e a liberdade da autoridade psicológica da qual você depende. Você sabe, nós, seres humanos, somos estranhos. Nós negamos a autoridade externa na política ou, lamentavelmente, neste país você cospe na face de alguém denominado policial – é terrível cuspir no rosto de qualquer pessoa – e até agora você está apegado a sua própria autoridade particular interiormente. Novamente há a contradição. Porque sempre se começa por desprezar a autoridade externa? Se você despreza a autoridade, porque você não começa desprezando e cuspindo em seu próprio autoritarismo interior! Você não começa por ele, provavelmente, porque interiormente você não está num grupo, você está só, não há ninguém para manifestar-se com você. Você está sozinho e provavelmente você tem medo de viver tão profundamente, na beleza da solitude interior. Portanto, você começa negando a autoridade do lado de fora.

Nós sempre fazemos isso. Nós todos queremos viver uma vida de simplicidade e todos começamos pelo final – uma refeição no dia e tudo o mais, simulando um show, exibicionismo como num circo, mas viver uma vida de simplicidade interiormente é muito difícil. E somente uma vida profunda e simples – no sentido de ausência do medo e da ambição – apenas a mente realmente simples pode observar e amar.

J. Krishnamurti falando em San Diego, em 5 de abril de 1970.


26 de julho de 2014

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