Jardim dos Mestres

Sobre a libertação do condicionamento

Uma das coisas mais difíceis – parece-me – é a correta comunicação entre pessoas. Se desejo dizer algo, tenho de usar certas palavras, e as palavras tendem naturalmente a ter significado ou valor diferente para cada um dos ouvintes. Uma reunião silenciosa de pessoas produz seus benefícios próprios; mas, para nos comunicarmos uns com outros, torna-se necessária a “verbalização”, e é muito difícil comunicar devidamente o que desejamos transmitir de maneira que o ouvinte compreenda sua inteira significação, principalmente em se tratando de matéria complexa, como é agora o caso. Requer-se uma certa facilidade de comunicação, para que todos compreendam o que se está falando.

Desejo versar um assunto que considero bastante importante: se é possível, vivendo neste mundo, libertarmo-nos de todo condicionamento, a fim de que cada um se torne um verdadeiro indivíduo e, conseqüentemente, capaz de descobrir o que significa ser criador. Por certo, aquilo que se pode chamar a realidade, Deus, a Verdade, ou como quiserdes, é um estado de renovação constante, um estado de criação; e êsse estado criador não pode ser realizado, experimentado ou conhecido, se não há a verdadeira individualidade; e para se alcançar essa verdadeira individualidade torna-se necessária a libertação do condicionamento.

Nossa mente está condicionada pela sociedade em que vivemos, pelos livros que lemos, pela religião, pelos valores sociais e morais, por nossos temores e ambições, nossa inveja, etc.; tôdas essas coisas concorrem para criar um condicionamento mental. Isso me parece bem óbvio.

E é possível libertarmos a mente dêsse condicionamento – não com o procurar de um condicionamento melhor e mais nobre, porém libertando efetivamente o espírito de todo o seu condicionamento? Enquanto não o fizermos, não seremos indivíduos; seremos mero resultado da coletividade – e isso também é muito óbvio, embora seja provável que nunca tenhamos refletido a seu respeito.

Ao nos examinarmos com um pouco mais de atenção, torna-se evidente que, pela maior parte, o nosso pensar, os valores, as experiências, os conhecimentos, as crenças que possuímos, são resultado de nossa educação, de inumeras influências; o clima em que vivemos, os alimentos que ingerimos, a literatura e os jornais que lemos, todos os elementos ambientes – tudo isso condiciona a mente. Pode-se ver que nosso pensar está sempre de acôrdo com um padrão, e êsse padrão já está bem firmado. Quanto mais altamente organizada, quanto mais eficiente e cruel é a sociedade, tanto mais rigorosamente o padrão é cultivado e implantado na mente. E é possível ser-se livre dêsse condicionamento, de modo que a mente não pense de acôrdo com um padrão, porém transcenda completamente a esfera do pensamento? Isso, porém, não significa um vago misticismo, um estado sonhador, pois êsse estado, pelo contrário, é muito positivo.

Assim sendo, pode a mente libertar-se de seu condicionamento? Sei que há gente que diz que isso é impossível, uma vez que os entes humanos são, totalmente, um resultado de influências ambientes. O homem educado como cristão crê nos dogmas do cristianismo, enquanto o que foi educado como comunista não crê em nada disso – e isso, mais uma vez, demonstra como a mente é influenciada e posta a funcionar dentro de um padrão, uma rotina, aí permanecendo.

Ao observar isso, qual a nossa reação? Quer sejamos cristãos, quer hinduístas, budistas ou o que mais seja, já nos deve ter ocorrido, se investigamos seriamente, que cada um de nós é moldado, condicionado, por um certo padrão – não apenas o padrão impôsto pela sociedade, pela cultura, pelas influências econômicas, pela religião em que fomos educados, mas também por um padrão interiormente impôsto.

E devemos nos ter interrogado se épossível à mente que se habituou a pensar dentro de uma certa rotina libertar-se dessa rotina. Por certo, só a mente livre pode descobrir algo nôvo. O homem que puramente crê, ou não crê em Deus, continua prisioneiro do padrão de determinado ambiente; pela ação do mêdo, da compulsão, de tôda sorte de influências, continua êle a fazer parte do todo coletivo. Nessas condições, pode a mente assim agrilhoada, libertar-se?

A capacidade de nos libertarmos não depende, por certo, de outra pessoa. Percebo que minha mente é o resultado de inumeráveis influências, que suas reações são determinadas por um estado já condicionado; e se me interessa descobrir se minha mente pode libertar-se, não parcial porém totalmente, tanto no nível inconsciente como no consciente, não tenho necessidade de perguntá-lo a outro; posso observar a mim mesmo. Posso libertar-me da idéia de “minha pátria”, do estúpido nacionalismo, das crenças em que fui criado; mas, no próprio processo de me libertar posso cair noutro conjunto de padrões. Em vez de hinduísta, posso tornar-me cristão, budista, comunista, etc. – o que é sempre um padrão.

Assim sendo, é possível libertarmo-nos de um padrão sem cairmos noutro?

Se uma pessoa está muito vigilante e observando bem o processo mental formador dos hábitos, é possível, superficialmente, libertar a mente da formação de hábitos. Mas, o problema não é tão simples assim, porque temos o inconsciente total, também condicionado, e êsse condicionamento é muito mais difícil de perceber. É bem de ver que, pelo falar, pelo raciocinar, mediante várias formas de observação, posso libertar a minha mente do condicionamento superficial consistente em ser hinduísta ou católico – e isso, evidentemente, é necessário. Se desejo descobrir o real, devo ter, em primeiro lugar, uma mente não condicionada. A mente condicionada pode “projetar” suas próprias idéias e, a seguir, experimentar essas idéias. O cristão muito devoto e fartamente condicionado pode experimentar uma visão do Cristo; mas, o que êle está experimentando é sua própria “projeção”, procedente de seu fundo educativo, e tal experiência, portanto, nenhuma validade tem. Já se pudermos transcender tôdas as razões superficiais da mente, talvez então sejamos capazes de penetrar muito mais profundamente no inconsciente, que está incessantemente “projetando” o seu próprio condicionamento.

Assim, é possível penetrarmos conscientemente o nosso inconsciente, para descobrirmos as várias formas de seu condicionamento? Não sei se já pensastes em tal coisa. Podeis ter vossas opiniões a êsse respeito, podeis declarar que é possível ou impossível; mas, penso que o estudante realmente interessado em investigar cabalmente a questão não fará declarações dessa natureza. Ele estará no “estado de investigação”. Não pode investigar em referência a outra pessoa, mas, tão só, em referência à sua própria mente.

A investigação parece-me, deve ser sem motivo, sem nenhuma compulsão em dada direção. Se tenho um motivo para minha indagação, êsse motivo determinará o que acharei? Por conseguinte, não há verdadeira investigação enquanto houver um motivo qualquer. E quase todos nós temos variados motivos, não é verdade? Queremos ser felizes, queremos ser interiormente ricos, encontrar Deus, alcançar isto ou aquilo. E pode a mente despojar-se de todos os motivos e pôr-se no “estado de investigação”? Esta me parece, verdadeiramente, uma questão fundamental; porque é só quando estamos livres de motivos que seremos capazes de investigar a totalidade do inconsciente.

Em verdade, o inconsciente é um depósito de numerosos motivos de que não nos damos conta – temores, ânsias, e o resíduo racial. Para investigar tudo isso, a mente consciente, pelo menos, deve estar livre de qualquer motivo. E para se limpar, mesmo a mente consciente, de todo e qualquer motivo, requer-se muita vigilância, observação de nós mesmos. Isso significa estar cônscio do inteiro processo do pensar, verificar como o pensamento desponta na mente, e se esta pode mesmo libertar-se; ou, também, se o pensamento não passa de uma reação de determinado fundo, através da memória, não podendo, por conseguinte, ser livre. Uma pessoa pode ser capaz de raciocinar muito sutil e inteligentemente; mas, o seu raciocinar tem por fundo um determinado condicionamento.

Assim, para que a mente consciente possa investigar o inconsciente – onde estão depositados todos os motivos, impulsos, compulsões seculares – então, naturalmente, é necessário que a mente consciente esteja desde o comêço livre de motivos e padrões. E, parece-me, só nessa investigação começaremos a dissolver as influências coletivas de que somos atualmente constituídos. Não somos, agora, indivíduos; embora tenhamos um nome distinto, uma conta corrente particular, etc. etc., nada disso constitui individualidade. O que faz nascer o verdadeiro indivíduo é o estado mental liberto de condicionamento. Só então se torna possível descobrir se existe uma realidade além das limitações do pensamento, além das invenções e teorias da mente.

Enquanto não alcançarmos êsse estado, o que cremos ou não cremos a respeito de Deus ou da verdade tem muito pouca significação. Nossas crenças e descrenças serão meras repetições, imitações, das idéias e pensamentos colhidos nalgum livro ou da bôca de outra pessoa, ou, ainda, “projeções” de nosso próprio desejo de confôrto.

O homem verdadeiramente religioso não é aquêle que está aferrado a certas crenças e dogmas ou a rigorosas práticas morais, mas, sim, aquêle que começou a compreender o processo total de seu próprio pensar, tanto consciente como inconsciente. Esse homem é um verdadeiro indivíduo, porque sua mente não é mais um mecanismo de repetição; embora subsista a memória das coisas de que tomou conhecimento, essas coisas nenhuma influência têm no seu funcionamento. Essa mente se torna extraordinàriamente quieta, sem nenhum movimento de desejo, nenhuma “projeção” ou motivo. Nesse estado manifesta-se a ação criadora da realidade. Mas, isso não é uma coisa para se ouvir e repetir, apenas, como o menino que aprende e repete suas lições. Proceder assim não tem significação nenhuma. O necessário é que cada um penetre muito profundamente em si mesmo, desembaraçando-se de todos os seus temores superficiais, suas invejas, ambições, desejo de segurança, de apêgo, de dependência – tão importante, para a maioria de nós – desembaraçando-se de tôdas essas coisas estultas e insensatas, não apenas temporáriamente, mas libertando-se verdadeiramente de tôdas elas. Só então se pode descobrir se existe, ou não, uma Realidade, Deus, algo fora dos limites do tempo. Enquanto não descobrirmos isso por nós mesmos, não por intermédio de “salvadores” ou instrutores, porém pela experiência direta, pessoal, a vida continuará a ser uma coisa muito superficial. Podemos ter riquezas imensas, grande influência, e a possibilidade de viajar todo o mundo; podemos possuir vastos conhecimentos e mostrar-nos muito eloqüentes em nosso falar; mas, sem aquela experiência direta, a vida se torna muito trivial e, subterrâneamente, haverá sempre angústias, lutas, dores. Estaremos sempre procurando dar um significado à vida, indagando qual é a finalidade da vida; e inventamos, assim, uma finalidade – uma finalidade pessimista ou uma finalidade otimista.

Mas, se fôrmos capazes dessa constante investigação, que é uma verdadeira forma de meditação, não deixaremos de atingir o ponto em que perceberemos que todo o nosso pensar está condicionado e que nossas crenças e dogmas nenhum valor têm. E ao percebermos que são sem valor, essas coisas cairão por si, sem têrmos de lutar contra elas. A totalidade de nosso condicionamento pode ser quebrada, não aos pedacinhos, o que leva tempo, porém imediatamente, pelo direto percebimento da verdade a seu respeito. A verdade é que liberta, e não o tempo ou nossa intenção de sermos livres. Eis porque é necessário têrmos a mente aberta, extraordinàriamente receptiva. Porque não se pode perseguir e pegar a verdade; ela vem por si.

Releva, pois, investigar profundamente a questão do condicionamento, sem nos limitarmos a aceitar a asserção de outro sôbre se a mente pode, ou não, libertar-se. Cabe a cada um investigar e libertar a si próprio. Penso que então algo se descobrirá além de tôdas as palavras, algo verdadeiramente incomunicável. O homem que realizou, que experimentou, por si mesmo, essa coisa, é um homem verdadeiramente religioso, porque já não está sob a influência da sociedade, essa estrutura de ambição, aquisição, inveja, atividade egocêntrica.

Krishnamurti – 2ª Conferência em Bruxelas – do livro: Verdade LIbertadora – ICK – 1960

 


26 de julho de 2014

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