Jardim dos Mestres

Sobre a Identificação

 

Identificação é como sonho. Acontece quando achamos que somos algo de nós, como por exemplo, o corpo, ou quando achamos que somos algo que ocorre conosco, como por exemplo, o que foi dito ou dirigido à nossa pessoa.

É como se estivéssemos em estado de hipnose, totalmente fascinados por tudo que nos cerca, por nós mesmos, ou melhor, fascinados pelo que achamos que somos, pelo que achamos que são coisas são, pelo que achamos ser a realidade.

Ao que parece, existem níveis de consciência ou de inconsciência de identificação.

A identificação é um fenômeno que ocorre de forma tão absurdamente forte em nós que nos identificamos com o personagem que estamos representando nesta existência, com a personalidade. Então, como não conseguimos lidar bem com isso, projetamo-nos para uma camada superior e passamos a nos identificar com outras coisas, em camadas cada vez mais externas a nós.

A princípio, nos identificamos com idéias e pensamentos, depois com o próprio corpo, com as pessoas e com as situações. Enquanto não conseguirmos nos desidentificar em relação à personalidade, continuaremos a nos identificar com situações e pessoas externas.

Assim, identificamo-nos com os personagens da televisão, rimos, choramos, ficamos tristes, nervosos. Sentimos todas as emoções desses personagens. Mas a realidade é que, em nenhum momento saímos da frente da TV, ou seja, não havia motivo real para alterações do estado emocional. Tudo não passou de projeções e identificações, fascinações, sonhos e fantasias. Fomos e somos enganados pela mente. E o pior é que gostamos de ser enganados, sentimos prazer com isso.

A diferença entre este tipo de projeção/identificação e a projeção/identificação com a vida e com as pessoas é que, quando desligamos a TV, sabemos que nada do que assistimos era real. É bem verdade que algumas pessoas continuam em processo de identificação e projeção mesmo após sair da frente da TV, mas estes são casos mais extremados de fuga.

Sempre que passamos por algum sofrimento, nos identificamos com o sofrimento dos outros, seja na televisão ou na vida, no dia-a-dia. Identificamo-nos com mendigos, cachorros, indivíduos desempregados, maltratados, falidos, abandonados, de acordo com a natureza de nossas experiências, impressões, memórias, conceitos e preconceitos, padrões ou sensações.

Se uma pessoa se identifica com algo é porque, em alguma instância, ela é esse algo ou possui esse algo. Porém, a “casca” intelectual, os padrões, os conceitos e preconceitos, o orgulho e a vaidade, impedem a compreensão desta realidade.

Seja como for, o fato é que nos identificamos com uma visão muito limitada de nós mesmos, baseada no desejo, na ignorância, na ilusão, na necessidade de aceitação, de auto-afirmação, e essa visão limitada corresponde só a uma pequena parte de nós. Assim, divididos, separados, fragmentados, cheios de conflitos internos, vamos projetando tudo isso, vamos criando conflitos com os outros e alimentando a separatividade. Em síntese, identificamo-nos com aquilo que reconhecemos ou aceitamos em nós e rejeitamos, nos outros, aquilo que não reconhecemos ou não aceitamos em nós.

Vivemos a fazer julgamentos, identificados com a parte da história que achamos ser a melhor. Rotulamo-nos e ficamos identificados com rótulos que nos atribuímos. Sempre que emitimos um julgamento, como por exemplo: “isso é raiva” e “isso é paciência”, rotulamo-nos como pacientes, nos identificamos com este quadro e ficamos cegos para as situações de raiva ainda não observadas. Justificamos aquelas já observadas e ficamos cegos para os aspectos da raiva ainda não reconhecidos. Esta postura dificulta muito, quando não impossibilita, qualquer tipo de mudança, qualquer tipo de evolução. Limitamo-nos. Não há mais o que conhecer sobre a raiva. Como previamente determinamos, somos “pacientes”.

A identificação é uma escravidão que nasce da insegurança, da necessidade de aceitação e de auto-afirmação, de uma mente frágil e divida pelos egos. Se nos atribuem rótulos favoráveis, se nos elogiam, sentimos prazer, nos identificamos, de pronto, como a imagem positiva que fizeram a nosso respeito. Identificados, cegos e fascinados, tudo fazemos para correspondermos às expectativas que depositaram em nós e recebermos mais e mais elogios. E, nessa busca incessante por aceitação e prazer, vamos nos escravizando.

Enquanto estivermos identificados, estaremos apenas trocando de rótulos. Embora sejam rótulos mais bonitos e agradáveis, continuarão a ser rótulos, e nós continuaremos cegos. Na realidade, não existe importância ou valor para qualquer rótulo que possamos receber em função de nossas falhas, de nossos atos fora de padrão. Se estamos atribuindo importância aos rótulos a nós destinados, que acreditamos ser negativos, maus, inferiores, é porque estamos identificados com rótulos que acreditamos ser positivos, bons, superiores.

Para nos conhecermos melhor, precisamos, ao invés de nos identificarmos conosco, ser imparciais. A projeção pode ser uma arma poderosa para o auto-conhecimento. Mas, antes de analisar terceiros para melhor nos conhecermos, precisamos estar totalmente livres de qualquer identificação, precisamos ser totalmente imparciais.

Conta a mitologia grega que Medusa, um ser monstruoso, com serpentes na cabeça, presas pontiagudas, mãos de bronze e asas de ouro, tinha o poder de petrificar aqueles que a olhassem diretamente. O herói Perseu, enviado para exterminá-la, utilizou então um escudo mágico de metal polido, que refletia a imagem de Medusa como se fosse um espelho. Desta forma, pôde decapitá-la com a espada de Hermes. Esta lenda ilustra bem a proposta desta reflexão.

Ainda, a título de ilustração, reproduzimos as palavras de Samael Aun Weor em seu “Tratado de Psicologia Revolucionária”:

Do mesmo modo que é indispensável aprendermos a caminhar no mundo exterior para não cairmos em algum precipício, para não nos perdermos nas ruas de uma cidade, para selecionarmos nossas amizades, para não nos associarmos com pessoas erradas, para não ingerirmos veneno, etc, assim também, mediante o trabalho psicológico sobre nós mesmos, precisamos aprender a caminhar no mundo interior, o qual é explorável pela auto-observação.

Para aquele que tem olhos de ver e ouvidos de ouvir, corpos falam, olhares falam, paredes falam, gestos falam, palavras dizem muito mais do que os sentidos normais podem perceber. O interior dos homens se revela através de seu exterior. É possível enxergar bem além das aparências.

Empresas especializadas em sistemas de Call Center, utilizam uma técnica conhecida como desidentificação, a fim de evitar que os atendentes se irritem e maltratem os clientes. A técnica é aplicada atribuindo a cada um dos atendentes um nome fictício, que pode variar. Na verdade, trata-se de um artifício, de uma muleta, destituída de uma compreensão correta do que seja a não identificação. Porém, neste procedimento, os funcionários atendem às ligações como se fossem outras pessoas, uma vez que a identificação de si mesmos com o próprio nome é praticamente inevitável e traz conseqüências. Se o atendente utilizasse seu verdadeiro nome nesse sistema de comunicação, ao ser ofendido pelo cliente, iria se sentir diretamente atingido. Mas, atuando desta forma não identificada, acaba vendo tudo como uma brincadeira.

Será que é necessário utilizarmos esse tipo de muleta? Será que é impossível, no dia-a-dia, percebermos que não somos um nome, uma personalidade, uma imagem mental? Será que é impossível percebermos que a vida é uma brincadeira, um jogo, um filme?

A identificação pode acontecer sob as mais variadas formas, tão variadas quanto podem ser variadas as experiências de cada um de nós.

Todos estamos identificados com nós mesmos, com nossos nomes – temos a sensação de sermos o nome. Assim, quando os atendentes da empresa assumem um outro nome, a sensação é de que são outras pessoas ou de não serem eles mesmos. Por conseguinte, vêem as ofensas recebidas como sendo dirigidas a outra pessoa.

Estamos identificados com nós mesmos, com nossos nomes, personalidades. Temos a sensação de sermos o nome, de sermos a personalidade. Vivemos fascinados pelo personagem que criamos; nos apaixonamos profundamente por este personagem, por nossa personalidade. E, como todo apaixonado, não conseguimos perceber a realidade.

Por vezes ocorre de estarmos vivendo uma situação parecida com a que uma outra pessoa também já viveu de maneira prazerosa. Neste caso, a pessoa irá se lembrar dos momentos vividos, se identificar neles, e tenderá a nos ajudar, a nos apoiar ou elogiar. Em contrapartida, a reação de alguém que passou por situação simular e não sentiu prazer nessa experiência provavelmente será a de reclamar, introduzir-nos medo e apreensão, desencorajando-nos, em virtude da identificação. Há também o caso daqueles que não passaram pela situação mas que desejam passar por ela um dia. Estes, ao se identificarem, podem reagir de duas maneiras: sentir inveja e criticar ou ficar feliz por nós e nos apoiar, nos elogiar. Uma outra hipótese, ainda, é a de alguém que não passou pela situação, desejaria ter passado por ela, mas acha que já não é mais possível. Este, ao se identificar, pode ficar enfurecido e não aceitar, e aí seus egos saltarão das sombras, ou pode, por outro lado, se alegrar, realizando-se através de nós.

Todas as formas de nos auto-definirmos, nos auto-conceituarmos, nos rotularmos, devem ser deixadas para trás, devem ser postas de lado, para que possamos ter paz, para que nos tornemos pessoas livres. A identificação com funções, com riqueza ou pobreza, com religiões, com alegrias ou tristezas, com sofrimentos e aflições, ou até mesmo com a própria aparência física, surge de condicionamentos que absorvemos desde o nascimento. É sábio identificar e descartar tudo isso.

A personalidade, os egos, querem tudo para si, acreditam que tudo existe em função deles. Assim, se alguém elogia um trabalho que executamos, por exemplo, nos identificamos e tomamos o elogio para nós; se alguém expressa gratidão por nossas ações, tomamos essa gratidão para nós. E, quando tomamos essas manifestações para nós, para a nossa personalidade, para o nosso ego, passamos a projetar, a fantasiar. Acreditamos que somos ótimos, que nos adoram, que nosso trabalho é maravilhoso, que somos extremamente competentes. Somos tomados por sensações de prazer, poder, fama, aceitação.

O sofrimento está diretamente ligado ao fato de acharmos que somos o centro de tudo, à nossa ganância de elogios, prazeres, poder, fama, aceitação. Movidos por esses impulsos, não há como não sofrer diante da contraparte negativa das manifestações a nós dirigidas, ou seja, quando, ao invés de elogios, recebemos críticas, ofensas ou humilhação, o que despertará em nós um sentimento de inferioridade, impotência, rejeição. Por exemplo, quando alguém critica um trabalho que realizamos, tomamos a crítica para nós e nos identificamos, interpretamos o fato como uma questão pessoal e sofremos. E assim ocorre com cada uma de nossas idéias que venha a ser criticada, direcionamos essa desaprovação para nós. Sofremos, ficamos psicologicamente abalados, por acharmos que somos as nossas idéias.

Precisamos perceber que não somos nossas idéias, não somos nossas tarefas, nosso trabalho, não somos o corpo, a personalidade, não somos uma imagem, um representação mental, não somos nossa casa, carro, roupa, não somos diplomas, títulos, cargos.

Enquanto continuarmos a viver identificados desta maneira, viveremos como escravos das situações, sempre reagindo sem qualquer controle. Sempre reagindo, nunca agindo. A vida nos leva a fazer escolhas diárias entre o certo e errado, entre o bem e o mal, entre um extremo e outro. E muitas vezes achamos que nossas escolhas são as melhores, mas, como estamos identificados a um nível inconsciente, nem sempre conseguimos enxergar a verdade das situações. Assim, nossa reação será uma reação viciada pelo passado. E reagir já é um erro em si.

Precisamos parar de culpar os outros pelo que nos acontece de ruim, precisamos tomar as rédeas das situações. Esta é a única maneira de modificá-las. Mas essa mudança nunca acontecerá enquanto acharmos que a culpa é dos outros, das condições externas, etc. Procurar culpas externas faz parte da fantasia, da fascinação, faz parte da identificação.

Só conhecendo a verdade sobre cada aspecto da identificação é que conseguiremos nos libertar dela e compreenderemos o que é a identificação em sua essência.

Por enquanto, podemos concluir apenas que nada sabemos sobre identificação, que somos ignorantes neste assunto. Qualquer tentativa, neste momento, de definir a identificação em nós pode limitar nossas experiências. Precisamos estar abertos, para que possamos nos permitir, cada vez mais, a descoberta, o conhecimento da identificação em nós. Precisamos estar abertos, para que possamos nos permitir, cada vez mais e mais profundamente, a descoberta, o conhecimento da identificação em si.

Fábio Ferreira Balota


8 de outubro de 2014

0   Respostas em Sobre a Identificação

  1. Julia disse:

    Obrigada por esta excelente explicaçao.Me ajudou muito. Obrigada mesmo. Certamente que nao é facil todavia é tudo que vale a pena nesta vida; o Trabalho sobre nós mesmos.

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