Jardim dos Mestres

Zhiné

 

Todas as disciplinas yogues e espirituais comportam uma forma de prática que desenvolve a concentração e pacifica a mente. Na tradição tibetana, esta prática chama-se shine (sct: samatha), a meditação da calma mental. Distinguimos três estágios no desenvolvimento da estabilidade: shine concentrado, shine natural, shine último. Shine começa pela fixação mental sobre um objeto depois, quando a concentração é suficientemente forte, continua pela fixação sem objeto.

Comecemos a prática sentando-nos na postura da meditação em cinco pontos: pernas cruzadas, mãos superpostas apoiadas sobre o colo, palmas para cima, coluna vertebral reta mas sem rigidez, cabeça ligeiramente inclinada para baixo para estender a nuca, olhos abertos. Os olhos devem estar relaxados, nem muito abertos, nem fechados. O objeto de concentração deve ser colocado de maneira a que os olhos vejam o horizonte, nem para cima, nem para baixo. Tentemos não nos mexer enquanto praticamos, do mesmo modo não deglutir nem piscar os olhos, sempre mantendo a mente unicamente pousada sobre o objeto. Mesmo que as lágrimas inundem o rosto, não se mexam. Deixem a respiração fluir naturalmente.

Utilizamos geralmente a letra tibetana A ?? quando fazemos shine com um objeto. Esta letra tem muitas significações simbólicas; aqui, ela serve simplesmente de suporte à concentração. Podemos também nos servir de outros objetos – a letra A do alfabeto latino, uma imagem, o som de um mantra, a respiração – praticamente não importa o objeto. É melhor contudo tomar alguma coisa que esteja em relação com o sagrado, porque é uma fonte de inspiração. Tentemos utilizar o mesmo suporte cada vez que meditarmos, de preferência a passar de um para outro, porque a continuidade age como suporte da prática. É igualmente preferível se fixar sobre um suporte exterior ao corpo, porque o objetivo é desenvolver a estabilidade durante a percepção dos objetos exteriores depois, finalmente, dos objetos do sonho.

Se querermos utilizar o A ?? tibetano, escrevam sobre uma cartolina de cerca de 2,5 cm de lado. Tradicionalmente a letra é branca, inscrita sobre um disco índigo, cercado de cinco círculos concêntricos coloridos em azul, verde, vermelho, amarelo e branco. Fixemos esse desenho sobre um suporte bastante longo para que o papel fique na altura de nossos olhos quando estivermos sentados na postura e damos a ele uma base que o mantenha na vertical. Coloquem a quarenta e cinco centímetros diante de vocês.

Numerosos sinais de progresso podem aparecer durante a prática. À medida que a concentração se reforça e que os tempos da prática aumentam, estranhas sensações podem aparecer no corpo e muitos fenômenos visuais estranhos podem se manifestar. Acharemos também que nossa mente faz coisas estranhas! Tudo isso é normal. Essas experiências participam naturalmente do desenvolvimento da concentração e nascem quando a mente se estabiliza; não fiquemos nem perturbados nem exaltados por elas.

Shine Concentrado (Samatha)

O primeiro estágio da prática é chamado “coação”, porque ele necessita um esforço. A mente é rápida e facilmente distraída e pode parecer impossível que ela fique focalizada em um objeto durante mais de um minuto. No início, é útil praticar alternando numerosas sessões curtas e pausas. Não deixar a mente vagar durante essas últimas, mas recitar principalmente um mantra, ou fazer um trabalho de imaginação mental [visualização], ou então uma outra prática que conheçamos, como o desenvolvimento da compaixão. Após a pausa, retomar a prática da concentração. Se quisermos meditar mais e não tivermos mais o suporte que utilizávamos habitualmente, imaginemos uma esfera de luz entre nossas sobrancelhas e concentremo-nos nela. É preciso praticar uma a duas vezes por dia, mais freqüentemente se tivermos tempo. Desenvolver a concentração é como reforçar os músculos do corpo: os exercícios devem ser freqüentes e regulares. Para se tornar mais forte, ultrapassar sem cessar seus limites.

Mantenhamos a mente pousada sobre o suporte. Não seguir os pensamentos do passado ou do futuro. Não deixemos a atenção ser levada pela imaginação, o som, a sensação física, ou qualquer outra distração. Permaneçamos simplesmente na sensação do instante presente e, com uma força e uma claridade totais, fixemos a mente sobre o objeto por intermédio dos olhos. Não percamos a consciência do objeto, nem por um segundo. Respiremos suavemente, depois ainda mais docemente, até que se perca a sensação de respirar. Lentamente, deixemo-nos ir mais profundamente na tranqüilidade e na calma. Manter o corpo relaxado; não nos crispemos aos nos concentrar. Não nos deixemos mais cair no torpor, desagrado ou êxtase.

Não pensemos nada sobre o objeto, deixemo-lo existir na consciência. É uma importante diferença à fazer. Manter pensamentos a propósito do objeto não é o gênero de concentração que nós desenvolvemos. Trata-se somente de manter a mente pousada sobre o objeto, sobre a percepção sensorial do objeto, de permanecer consciente, sem distração, da presença do objeto. Quando a mente se torna distraída – e é freqüente no início – conduzamo-la suavemente para o objeto e deixemo-la aí.

Shine natural

O segundo estágio da prática – shine natural – começa quando a estabilidade é instalada. A primeira etapa consiste em desenvolver a concentração dirigindo continuamente a atenção sobre o suporte e controlando a mente turbulenta. Na etapa seguinte, a mente está absorvida na contemplação do suporte e não é mais necessário forçá-la a se manter tranqüila. Uma tranqüilidade agradável e relaxada é estabelecida, na qual a mente está calma e os pensamentos surgem sem a distrair de seu objeto. Os elementos do corpo se harmonizam e o prana circula suave e regularmente através do corpo. É chegado o momento de passar à concentração sem objeto.

Abandonemos o suporte material e pousemos o olhar sobre o espaço. É útil olhar um grande vazio, como o céu, mas podemos praticar mesmo em uma pequena peça fixando o espaço compreendido entre o corpo e a parede. Permaneçamos estáveis e calmos. Deixemos o corpo relaxado. Em lugar de nos concentrar sobre um ponto imaginário do espaço, deixar a mente se expandir completamente mantendo uma forte presença. Nós chamamos isso “dissolver a mente no espaço”. Ou “misturar a mente ao espaço”. Isso conduzirá à tranqüilidade duradoura e ao terceiro estágio da prática de shine.

Shine último

Enquanto que no estado precedente a absorção no objeto se mistura ainda com um certo pensador, o terceiro estágio é caracterizado por uma mente tranqüila, mais leve, relaxada e dócil. Os pensamentos nascem e se dissolvem espontaneamente sem esforço. A mente é totalmente unificada com seus movimentos próprios.

Na tradição Dzogchen, é tradicionalmente nesse estágio que o mestre introduz o estudante ao estado natural da mente. Como o estudante está desenvolvendo o shine, o mestre pode designar o que o estudante já experimentou de preferência a descrever um novo estado que é preciso descobrir. A explicação, conhecida como “a instrução que designa”, tem por objetivo conduzir o estudante a reconhecer o que já está aí, a diferenciar a mente em movimento habitual da natureza da mente, a qual é pura consciência não-dual. É o estágio último da prática de shine, permanecer na presença não-dual, em rigpa mesmo.

Obstáculos

Três obstáculos devem ser ultrapassados durante a prática de shine: a agitação, o torpor e o relaxamento.

Agitação

A agitação faz com que a mente salte sem parar de um pensamento a outro e a concentração fica difícil. Para evitá-la, nos acalmamos evitando toda atividade física ou mental excessiva. Alongamentos lentos podem ajudar a relaxar o corpo e acalmar a mente. Quando estamos sentados, façamos algumas respirações profundas e lentas. Tornemos isso um hábito para focalizar imediatamente a mente quando começamos a prática, afim de não criar a tendência ao vaguear mental durante a meditação.

Torpor

O segundo obstáculo é a sonolência, ou torpor, que invade a mente como uma névoa, um peso que embota a acuidade do estado de consciência. Quando ela acontece, tentamos reforçar a concentração da mente sobre o objeto para vencer a sonolência. Poderemos constatar que ela é uma espécie de movimento da mente que nós podemos parar graças a uma forte concentração. Se isso não for eficaz, façamos uma pausa, estiquemo-nos e pratiquemos eventualmente de pé.

Relaxamento

O terceiro obstáculo é o relaxamento. Quando encontrarmos este obstáculo, teremos a impressão de ter a mente calma, mas o estado mental é fraco e passivo, sem força de concentração. É importante reconhecer este estado pelo que ele é. Porque a experiência pode ser muito agradável e repousante e, se a tomarmos erradamente por uma meditação correta, podemos perder anos a mantendo, sem mudança desejável da qualidade da consciência. Se nossa concentração perde sua força e se nossa meditação se relaxa, reforcemos a postura e despertemos nossa mente. Revigoremos a atenção e vigiemos a estabilidade da presença. Consideremos que a prática é preciosa, isso é o que ela é, e como é suscetível de conduzir à mais elevada realização, é isso que ela fará. Reforcemos a motivação; automaticamente a vigilância da mente se reforça.

É preciso praticar shine cada dia até que a mente esteja pacificada e estável. Essa não é somente uma prática preliminar. Ela é útil em cada instante da vida do praticante: mesmo os yoguis mais avançados a ela se consagram. O yoga do sonho e todas as outras práticas meditativas repousam sobre a estabilidade da mente obtida graças à shine. Quando adquirirmos a estabilidade firme e durável da presença calma, poderemos desenvolver esta estabilidade em todos os aspectos da existência. Quando ela é estável, a presença pode sempre ser encontrada e não é mais varrida pelos pensamentos e as emoções. Então permanecemos na consciência, mesmo se as marcas cármicas continuem a produzir imagens oníricas após o adormecer. Isso dá acesso às práticas posteriores dos yogas do sonho e do sono.

 

Tenzin Wangyal Rinpoche
Os Yogas Tibetanos do Sonho e do Sono


7 de setembro de 2012

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